JOGO, CIÊNCIA, DROGAS E ACULTURAÇÃO
JOGO, CIÊNCIA, DROGAS E ACULTURAÇÃO Por: Dr. Sócrates Brasileiro S. S. Vieira de Oliveira
Colaboraçao: Kátia bagnarelli Vieira de Oliveira
Futebol: esporte ou jogo
O futebol é um esporte e um jogo. Em minha opinião, mais jogo que esporte. Tenho plena convicção que esta característica é o que atrai tão grandes multidões aos seus espetáculos. Quem não se emocionou um dia com a estória de David e Golias? Pois é, é sobre este mesmo prisma que se apóia o futebol. Por ser um jogo em que a regularidade praticamente não existe, o imponderável muitas vezes se faz presente e premia a equipe mais fraca. Diferente de todos os outros esportes coletivos em que o melhor dentro da competição sempre sai vencedor, no futebol sempre existe a possibilidade de uma grande surpresa. Certa vez, quando jogava no Botafogo, ao enfrentar um dos grandes do futebol de São Paulo no Pacaembu, escapamos de levar uma sonora goleada por falta de pontaria dos atacantes adversários e por sorte do nosso goleiro. Eles, sem exagero, chutaram umas trinta bolas contra o nosso gol enquanto que nós quase não passávamos do meio do campo. Foi um jogo de um time só como se diz hoje. Porém, por incrível que possa parecer, nós é que acabamos conseguindo a vitória. Na única oportunidade que tivemos de chutar a gol, acertamos o alvo para desespero da torcida inimiga. Um verdadeiro absurdo. Um absurdo que muitas vezes impede que no futebol se invista. Os norte-americanos, por exemplo, mesmo reconhecendo a importância deste esporte no planeta que eles tanto querem abraçar por inteiro, sempre tiveram muitas dificuldades em atrair o interesse de um
público maior e, por conseqüência, de grandes investidores para o futebol. É que o sucesso, o dinheiro e a vitória, são partes fundamentais da sua cultura o que, para eles, torna-se inimaginável conviver com um esporte em que o melhor tenha chance de perder. Ao contrário das suas principais paixões esportivas como o basquete, o futebol americano, o hóquei e o beisebol onde o melhor sempre vence. Mas para que o melhor vença é necessário que se tenha um confronto limpo. Para tanto vemos que em qualquer destes outros esportes apreciados na América o número de árbitros é grande o suficiente para evitar que haja algum tipo de manipulação que provoque uma perda de confiança dos espectadores quanto à lisura do espetáculo. Mesmo sendo esportes em que as surpresas inexistem, há uma grande preocupação em se evitar o erro. Já o futebol me parece ser o primo esperto de todos os esportes. Mesmo sendo aquele que possui a grande chance de oferecer surpresas, nem sempre agradáveis, é o que se mantém ao largo das novidades tecnológicas—até vídeo tape ele se nega a utilizar para dirimir dúvidas. E o que é pior, preserva na sua estrutura a centralização das decisões em um único indivíduo com o direito ao juízo absoluto. Uma única esfera de poder decisório. Temos então aqui uma situação em que os erros são tratados como naturais— sejam eles humanos, provocados pelo clima ou por qualquer outro motivo. E ninguém que de alguma maneira está à frente da organização dos espetáculos de futebol sequer aceita discutir, muito menos concordar, que isto é um grande absurdo. Principalmente pelo montante de dinheiro e de poder que corre em torno e no futebol. Ou será que eles não querem que se mexa em nada exatamente por isso? Estando todas as decisões nas mãos de um único individuo é fácil supor que eventualmente este possa ser influenciado de várias maneiras. E não estou aqui falando somente de má fé. Imaginemos que um árbitro saia de casa para trabalhar de mau humor, com dívidas em profusão, brigado com a mulher, sofrendo com o namoro da filha que se apaixonou por um malandro que vive do tráfico de drogas, que tenha acabado de perceber que o boletim do filho mais
novo está pela hora da morte e, para que não seja pouca a desgraça, ainda no vestiário antes da partida fique sabendo que a sua casa foi assaltada. Como é que este cara pode ter em mãos o poder quase divino de decidir uma partida de futebol e produzir efeitos vários na vida de milhões de pessoas? Pior, e se alguém lhe oferece a quitação de seus débitos? Que resposta ele pode dar? Qual a saída que ele pode encontrar? Esta é a lógica da corrupção. Centralização de poder e fragilidade dos poderosos. O futebol como ele é constituído até hoje, serve exatamente para que possa haver manipulação de resultados. Em qualquer lugar do mundo. Na Itália todo ano alguns são presos por isso, aqui no Brasil estoura um escândalo atrás do outro e até em copas do mundo acontece. Deveríamos ter um número maior de árbitros participando das decisões de uma partida de futebol. Assim, o roubo seria mais difícil. Mas será que a FIFA quer isso?
Talento x organização
O jogo de futebol moderno como foi idealizado pelos ingleses no fim do século XIX pouco se modificou estruturalmente de lá para cá. Os responsáveis pela associação internacional de futebol aparentemente jamais se preocuparam em tornar este esporte diferente do que ele sempre foi. E têm suas razões. Afinal, o futebol se tornou o esporte mais popular do planeta e carrega multidões para acompanhar as competições em seus estádios. Há, inclusive, muitos deles que foram construídos especialmente para o futebol. Mas a trajetória do futebol nunca foi uniforme. No início, as equipes tinham a preocupação quase que específica de atacar o que provocava uma distribuição disforme dos jogadores em campo privilegiando os que se colocavam próximos do gol adversário: eram pouco defensores e muitos atacantes, quando não todos. Com a implantação do impedimento—de início, exigindo que um jogador para receber a bola em condições de jogo tivesse no mínimo três adversários à frente—surgiu a primeira definição tática que realmente se afirmou (o 2-3-5) que consistia em uma linha de dois zagueiros já com a definitiva missão de tentar conter os ataques adversários, uma segunda linha no meio de campo de três armadores que se dividiam entre marcar e fazer a intermediação entre a defesa e o ataque e uma terceira linha de cinco atacantes que se preocupava única e exclusivamente em fazer gols. Como bem podemos perceber ainda existiam muitos atacantes para poucos zagueiros o que deveria tornar estes defensores presas fáceis para os golpes inimigos. Jogos com muitos gols para os dois lados era no mínimo o que se esperava. Porém, as estratégias táticas implantadas para fazer bom uso da lei do impedimento complicavam os atacantes, pois como havia apenas dois zagueiros, ao se deslocar um deles para perto da linha de meio campo em geral se colocava um ou mais atacantes fora de jogo. Foi então que se alterou a lei do impedimento que determinava a partir dali seriam necessários apenas dois jogadores entre o atacante que recebesse a bola e o gol adversário. Esta foi a mudança mais
radical que o futebol sofreu desde a sua criação. E olhem que isto aconteceu nos anos 20 do século passado, noventa anos atrás. Com a alteração da lei do impedimento, começaram a aparecer variantes táticas que passariam a fazer parte da filosofia deste jogo. E todas elas privilegiando uma gradativa preocupação com as funções defensivas. O esporte que antes era baseado na busca incessante do gol—seu único objetivo final—abdicou de sua ideologia para valorizar, em última análise, o resultado positivo como o grande objeto de desejo, ainda que poucos gols fossem marcados. Com o advento de formas de se jogar cada vez mais fechadas nas defensivas como o ferrolho suíço, começaram a despontar, até por necessidade, os grandes talentos individuais. Jogadores com qualidades técnicas excepcionais baseadas na criatividade, na ginga corporal ilimitada, em grande visão de jogo e precisão absurda nos passes e nos dribles se destacavam dos demais e o futebol de alguns países como o Brasil passou a ser visto como um adversário perigoso e surpreendente. Esta nova forma de se jogar futebol se contrapunha ao jogo pragmático e previsível da maior parte dos países europeus o que provocava um contraste não só esportivo como cultural. Enquanto o jogo europeu se baseava na organização, na repetição das jogadas, na dureza na marcação e na rigidez tática, o brasileiro dependia de sua capacidade criativa para suplantar os regimes mais fechados. Nas primeiras Copas Mundiais a seleção que mais se destacou, junto do Uruguai, foi a italiana. O futebol italiano que implantou a presença do líbero como último homem de defesa logo que a lei de impedimento foi modificada, sempre foi o que mais investiu na qualidade defensiva de suas equipes. Sendo pioneiro neste e em vários outros processos de evolução das possibilidades defensivas, é natural que tenham adquirido uma experiência e uma capacitação especiais neste quesito. E não é por outro motivo que o futebol brasileiro tem como principal e mais difícil rival a seleção e as equipes italianas. Como o jogador brasileiro depende de espaço para ter condições de desenvolver todo o seu potencial, ele enfrenta grandes dificuldades quando sofre uma marcação individual que até
a pouco tempo foi uma marca presente em cada um dos times que utilizavam o tipo de jogo italiano. Foi em meados do século passado que o futebol brasileiro começou a crescer a partir da presença maciça dos negros em suas equipes e da diminuição das rivalidades regionais que tanto prejudicaram a seleção brasileira nas primeiras Copas do Mundo. Com o aparecimento de grandes jogadores como Pelé e Garrincha, os esquemas defensivos que tanto sucesso fizeram até ali passaram a ser insuficientes para obstar estes talentosos jogadores. E mesmo aumentando o número de defensores pouco se conseguia frente a estes excepcionais criadores. É que os espaços eram imensos e impedir atletas como eles de criar era uma façanha praticamente impossível.
Surgimento da ciência do esporte Estes espaços eram assim gigantescos porque a preparação física destes jogadores ainda era tratada como uma atividade menos importante, menor, que a parte técnica ou tática. E era lógico que isto fosse visto assim. A ciência esportiva, então, dava apenas os primeiros passos. Somente em 1954 é que foi criada a principal organização de fomento á ciência esportiva: o American College of Sports Medicine. Exatamente no período em que apareciam estes jogadores especiais. Como estes apresentavam também qualidades físicas natas que os colocavam em vantagem contra seus marcadores, era natural que as dificuldades em marcá-los fossem grandes. Temos aqui um período em que, apesar de todos os estudos e implantações de novidades táticas, a qualidade individual podia superar todos os esforços coletivos de uma equipe. A vitória do gênio contra a organização. O fato limítrofe, a meu ver, de todas as transformações que iriam ocorrer no futebol, foi a Copa do México de 1970. Jogar em condições tão difíceis como na altitude de mais de 2.000 metros provocou uma verdadeira caçada ao que de mais novo havia quanto aos estudos na área esportiva. Os trabalhos científicos realizados
dois anos antes motivados pela olimpíada acontecida na mesma cidade e nas mesmas condições serviram como base das ações de planejamento físico das equipes mais importantes ainda que fossem preocupações incipientes comparando-se com os dias de hoje. Mesmo assim percebemos que a maior parte das delegações teve grandes dificuldades em lidar com aquelas condições. Naquela competição as exigências físicas ainda eram muito pequenas se formos comparar com a realidade atual. Estima-se que a distância percorrida por um jogador de futebol à época não passava de 4 km por partida em média o que determinava um ritmo de jogo bastante lento. Com isso, os espaços ocupados por cada jogador no campo de jogo eram limitados o que favorecia a movimentação dos demais. Principalmente em função disso é que os valores individuais podiam desenvolver com liberdade as suas qualidades. A partir desta competição, passamos a perceber uma preocupação cada vez maior com o estágio físico dos jogadores e as avaliações regulares já faziam parte da rotina das estruturas esportivas. Os testes de avaliação física e os treinamentos de maior intensidade fizeram com que ocorresse uma evolução da capacidade física dos atletas. Em função desta nova realidade física, a distância de desempenho entre os jogadores mais hábeis e os de menor capacidade técnica ficou menor e o equilíbrio aumentou. Um indivíduo de grande capacidade atlética já começava a ocupar os espaços que antes só eram oferecidos aos mais habilidosos e estes tiveram que melhorar suas referências físicas para atender a nova demanda.
Ronaldo- o jogador moderno
Talvez o exemplo melhor acabado do jogador moderno seja Ronaldo—chamado de fenômeno. Este é um atleta que conseguiu agregar uma boa atitude técnica com um vigor físico impressionante. Infelizmente com altos custos para a sua saúde. Quando se transferiu para a Holanda, Ronaldo ainda era um menino, com corpo de menino, e já tinha como característica principal a força física, apesar de aparentemente possuir uma massa muscular "normal" para a idade e para os parcos anos de futebol. Após dois anos, o que víamos era outra pessoa com uma impressionante alteração nos diâmetros musculares depois de um programa intensivo de desenvolvimento de massa muscular cujos detalhes não conhecemos, mas que sem dúvida se deu à custa de muito trabalho. Quem passa o dia junto aos "ferros" de uma academia sabe muito bem como se alcançar um resultado como aquele e quanto custa em tempo, dinheiro e saúde. Bem, mesmo para aqueles que jamais serão atletas de competição podemos dizer que a resposta muscular é sempre maior que a dos tendões e ligamentos porque estas estruturas são mais rígidas e de mais difícil e lento desenvolvimento. Quando se cria um desequilíbrio como este obviamente que os pontos menos maleáveis são os que mais sofrem. Quando um obeso, por exemplo, realiza exercícios pesados como os atletas realizam, ocorre uma sobrecarga em locais que existem para suportar peso como a coluna lombar e os joelhos, e isto cria condições de sofrimento nestas estruturas, e é por isso que são indicadas práticas mais leves e em piso mais macio para quem está iniciando qualquer programa de atividade física e/ou de recuperação. É claro que a chance de desenvolver nestas condições uma lesão crônica em algum destes pontos é muito grande. E foi o que aconteceu com Ronaldo. A tendinite nos patelares nada mais foi que fruto destas distorções de desenvolvimento. E, pior, provavelmente foi muito mal tratada em virtude do valor agregado do jogador. Esta então, tornou-se crônica e incômoda. Se nos reportarmos aos preparativos para a Copa do Mundo da França,
vamos nos lembrar que após todo e qualquer treino ele mantinha uma rotina de tratamento para diminuir as dores no local. Bolsas de gelo passaram definitivamente a fazer parte do cenário. Acompanhadas é claro de doses nem sempre homeopáticas de antiinflamatórios orais. O que, a meu ver, deve ser encarado como o grande vilão causador da crise convulsiva que acometeu Ronaldo horas antes da final do mundial da França em 1998 por culpa de uma eventual hipersensibilidade a estes fármacos. Eu mesmo, em virtude de uma dor ciática, joguei uma Copa (86) a base destes ingredientes e sei (e sabia) muito bem as possíveis conseqüências de seu uso e até onde se pode ir. Ora bolas, quem está suscetível a efeitos colaterais deste porte e, além disso tudo, é colocado em campo após um episódio como aquele, poderia estar, depreende-se, exposto às condutas terapêuticas questionáveis que estariam provocando mais fragilidade ao local da lesão.
Bruta transformação
Infelizmente a conquista de uma melhor condição atlética nem sempre é fruto de um trabalho físico adequado. Muitas vezes são utilizadas substâncias extremamente perigosas e cada vez mais sofisticadas. Já joguei com muita gente que em pouco tempo transformou o próprio corpo em um laboratório. E existem aqueles que mesmo jamais tendo sido atletas buscam o mesmo resultado por questões estéticas. Todo mundo, creio, tem um amigo ou conhecido que é vaidoso ao extremo. Eu tive um vizinho do qual nunca me esqueci. Ele era, não sei quanto, um pouco mais velho. Magro de dar dó e feio como eu,
Lucas tinha como particularidade uma tremenda necessidade de se mostrar. Usava creme no cabelo para torná-lo liso mesmo que por pouco tempo, gastava com roupas caras e passava horas no espelho. Sua figura, sempre bem cuidada, tinha um ar superior para pivetes como nós que andávamos em busca de referências mais velhas. Mesmo assim, talvez por culpa do corpo esquálido, tinha pouco sucesso com as meninas. Ao menos, aquelas da vizinhança. Depois da adolescência, a coisa deve ter melhorado, pois ele se casou e mudou-se dali. Com isso, ficamos anos sem ter notícias dele. O nosso reencontro se deu há mais um menos dois anos. Estava fazendo um passeio, quando fui chamado à atenção por um senhor bem mais velho, com a face bastante cansada e repleta de rugas. Os cabelos quebradiços e claros lhe davam um ar ainda mais antigo. Caminhava com dificuldades sobre as pernas finas e atrofiadas. Estava um caco, na linguagem coloquial. Ao seu lado havia um rapazola magrinho que supus fosse seu neto. Não o reconheci, a princípio. Isso, para mim, é sempre uma grande dificuldade. Quando aquele senhor disse seu nome—Lucas–, quase caí de costas e pior, não sabia como me portar. Sabe aquela situação em que toda e qualquer palavra que se diga parece que vai agredir o interlocutor? Procurei tratar a surpresa com naturalidade e durante alguns minutos conversamos sobre amenidades e o que havíamos vivido no período em que estivemos distantes. Apresentou, com natural orgulho, seu filho – que neto, que nada–, e logo depois nos despedimos. Voltei a encontrá-lo alguns meses depois e nova e impressionante surpresa: ele era outro homem. Mas, põe diferente nisso! Parecia que rejuvenescera uns 10 anos no mínimo. Todo hígido, forte e com uma musculatura de dar inveja a muito jovem por aí. Meu queixo caiu. Gente, inacreditável! Fantástico! E seu filho, então? Parecia um armário—daqueles imensos, de dar medo. Percebendo-me boquiaberto, começou a desfilar as causas de sua recuperação. Que ele, acompanhando a evolução de seu filho depois que este começara a freqüentar a academia de ginástica, resolvera acompanha-lo. Todos os dias, com raríssimas exceções, fazia algum tipo de exercício físico e que por isso, acreditava, estava tão forte.
Conversamos alguma coisa que não me lembro já que eu não conseguia mais prestar atenção no que ele dizia. Eu estava vendo diante de mim duas criaturas totalmente diferentes das que havia visto poucos meses antes. Jamais vou saber se eles usaram ou estavam usando algum tipo de "suplemento", mas por aquilo que havia presenciado não é difícil especular que uma transformação tão radical como esta possivelmente tenha sido fruto de uma ajuda extra de algumas drogas bastante utilizadas hoje em dia nas academias de ginástica e no esporte em geral. Apostaria nos anabolizantes ou no hormônio de crescimento. Pior é que nem sempre o usuário sabe o que está tomando. Isso sem falar de reposição de aminoácidos, creatina e outros mais que fazem parte de um gigantesco pacote de medicinas usadas para aumentar ou recuperar a massa muscular por esta questão estética, pois eles acreditam ser a imagem de momento, ou para demonstrar, através do aumento de força física, um determinado tipo de poder. Ou, o que é mais visível, para conquistas esportivas. Viajando um pouco lá atrás, o fato é que na nossa infância não havia destas coisas; a moda era a anfetamina. Mas, vocês já pensaram se o magro aqui, inadvertidamente, tivesse tomado estas bombas? Ah, aí é que eu queria ver! Com o corpo todo modulado e potente poderia até dizer que eu teria sido um atleta na acepção da palavra. O único problema é que não estaria mais aqui para contar estas histórias.
Resultado a qualquer custo
Como, aliás, aconteceu com outro velho amigo. Ele se chamava Cláudio e nascera, como meu pai, em Messejana. O distrito de Fortaleza, capital de estado do Ceará, que já acompanhara o nascedouro de José de Alencar e do ex-presidente Castelo Branco nada mudara, mesmo tendo ilustres cidadãos. Nem mesmo um ditador travestido de presidente havia se preocupado com aquele rincão. Cláudio cresceu como qualquer brasileiro que nada possui e
nada aspira—quase a maioria. A lagoa era seu prazer. Toda manhã, dirigia-se para os fundos do casebre onde morava e fitava aquele espelho de água. Tinha orgulho de seu quintal. Mangueirais provocadores de sombras imensas e recheadas de frutos. Ao fundo a imagem de sonhos. Conviver com aquele calor infernal era menos doloroso com aquela vizinha de vestes azuis. Nas madrugadas de insônia infantil se deliciava com os mergulhos sem o controle dos pais. Estes eram pequenos comerciantes. Com muito custo haviam alugado uma loja no mercadinho do vilarejo e vendiam o que podiam. Sacos de feijão, arroz e farinha se espalhavam pelo restrito espaço. Era uma vida sem grandes expectativas e o garoto ajudava no que podia. Especializou-se em engraxar os sapatos da elite. Sorte que naquela época tênis era um produto da ralé. Assim podia conquistar uns trocados para a feira semanal. Mesmo com todas as restrições sentia que seu mundo era mágico. Penava para acompanhar as lições que lhes eram dadas no colégio. Não tinha muita afinidade com os cadernos e livros, mas sabia que ali estava, quem sabe, um futuro melhor que o da família. Até que um dia tudo mudou. Um senhor de terno de fino corte bateu à sua casa. Queria conversar com seus pais para levá-lo para a capital. Quando soube, nada entendeu. Por quê? Recebeu como resposta que aquele homem havia acompanhado uma prova de atletismo que participara por pura farra e que tinha certeza de que era um talento esportivo. Tentou lembrar-se do fato, mas não percebia muita lógica naquilo. De qualquer forma o convite era irrecusável. Alojamento com colchão de espuma, alimentação farta e ainda por cima uma ajuda de custo muito maior que os sapatos de cromo poderiam lhe oferecer. Topou! E lá se foi Cláudio para o centro esportivo. Cresceu, aumentou o bíceps, engrossou as coxas e começou a colher resultados. Um terceiro lugar aqui, um segundo acolá e a família orgulhosa de seu sucesso. Até no jornal seu nome já era citado como uma grande esperança. No pan-americano seguinte foi convocado. Uma grande festa se fez na vila de seus pais. Primeira eliminatória: olhou para seu lado esquerdo e viu, ali, seus
grandes ídolos. Americanos e canadenses dominavam a prova. Colheu um frustrante sétimo lugar. Pensou em desistir de tudo. Não tinha condições de competir naquele nível, pensou. Aí, chegou um colega e lhe cutucou o ego: por que não tomas algo para melhorar teu rendimento? Tu serás o maior! Não tinha a mínima idéia do que estava por vir. Foi levado a um médico, dito famoso, que lhe receitou algumas pílulas. Sem pestanejar passou a usá-las regularmente. Como um milagre se pôs a fazer resultados surpreendentes—até para ele. Tornou-se recordista. Fez-se estrela. Com o dinheiro que arrematou, mudou a casa dos pais. Em vez de cacimba, água encanada. Em vez de lampião, luz elétrica. Era o máximo! Rodou o mundo a buscar a grana que faltava em casa. Onde tinha prêmio, lá ele estava. Nunca se preocupou com mais nada. Até que um dia a vaca foi pro o brejo: deu positivo seu antidoping. Esperneou, negou, disse que era uma conspiração contra ele, mas não teve jeito. Foi suspenso por dois anos e adeus à fonte de renda. Como encontrar novos patrocinadores sem credibilidade? O mundo ruiu a seus pés. Acabrunhou-se e perdeu a mulher amada que o trocou por um amigo. Depressão pura! Quando reagiu e voltou a treinar alguns meses mais tarde recebeu o golpe de misericórdia: as pintinhas vermelhas que se espalhavam há algum tempo por seu colo eram frutos de uma insuficiência hepática. Tumor de fígado. Hospital, cirurgia, sofrimento, negação, dor, sangramento, fraqueza, solidão. Depois de tudo isto e mais um pouco, Cláudio percebeu que era o fim. Fim do sonho. Tudo por culpa de sua ambição e desinformação.
Experimentos perigosos
Mas muitas vezes, os atletas contam com o auxilio luxuoso de quem deveria cuidar da saúde deles. É o caso do que acontecia na antiga Alemanha oriental e cujos artífices foram a júri há pouco tempo. Infelizmente, o resultado do julgamento de alguns dirigentes—condenados por estimular e/ou induzir o uso de substâncias estimulantes em seus atletas—pareceu-me extremamente leve para a gravidade de seus atos. Quem conhece um pouco desta história, esperava uma pena muito maior. Muita gente se lembra da potência esportiva que era a Alemanha do Leste. No quadro de medalhas em qualquer Olimpíada, só perdia para os EUA e para a URSS. Nunca me esqueço de um campeonato mundial de natação em que a equipe feminina perdeu apenas três das quinze provas disputadas. Existia muita curiosidade para se conhecer o método de treinamento oferecido aos nadadores daquele país e que permitiam resultados excepcionais como aquele, principalmente nas meninas. Ao se abrir o arquivo dos laboratórios que davam suporte aos treinadores e atletas, descobriu-se que todo tipo de conduta era visto como válida, desde que as vitórias acontecessem. Muitos dos mais conhecidos medicamentos e hormônios que hoje se utilizam em larga escala para melhorar o comportamento físico de alguns atletas, tiveram seus efeitos estudados naqueles centros. Chegavam ao cúmulo de engravidarem as atletas para que pudessem usufruir o aumento de produção de hormônio masculino no primeiro trimestre da gravidez, melhorando assim seus resultados. Há vários casos de masculinização provocada pelo uso indiscriminado de esteróides e muito mais. Quem, por qualquer motivo, usa do poder para provocar conseqüências tão danosas a qualquer indivíduo, deve pagar e caro por seus atos. Infelizmente aos pequenos resta apenas um pouco do que os poderosos possuem.
Drogas sociais
E no futebol não é diferente. Quantos já morreram em campo nos últimos anos? Gente jovem, atlética que tem a sua existência encurtada por motivações econômicas. E a classe dirigente a repetir: o show tem que continuar. Outra lamentável ocorrência é o aumento indiscriminado do uso das chamadas drogas sociais como a cocaína e maconha. Quantas vezes temos ouvido algo como: "Ele negou qualquer uso de cocaína e pareceu sincero em suas respostas" nas palavras de um dirigente de clube? Ou então: "Nossos contratados jamais fariam algo semelhante; são garotos que sabem o que é certo e o que é errado", na boca de outro. "Estamos tristes, ele estava se destacando" ou "Damos tudo a eles e ainda acontecem coisas como estas", pensam todos. O exame antidoping parece, na visão destes, que deve ser um procedimento válido e real somente quando acontece com atletas do time adversário. O advogado de um clube que de vez em quando é chamado para tentar consertar esta e outras bombas diria: "isto agride o princípio da presunção de inocência". É , mas está difícil fazer crer que a maior parte destes casos seja fruto de acidente. Acidente com cocaína?. Só falta inventarem—aliás, já inventaram em um jogo do Brasil pelas eliminatórias—que o jogador mascou uma folha de coca que um grande amigo (mui amigo) lhe trouxe da Bolívia e um dia, estando em casa sem nada fazer e sem ter o que comer, resolveu experimentar o gosto daquela estranha planta. Quem sabe? Todos sabem do cancro que é o consumo de drogas pesadas em nossa sociedade contemporânea e a extensão de seus estragos. O que é inadmissível é a forma como as pessoas que lidam com o futebol recebem este fato: sempre com a suada missão de tentar esconde-lo e "preservar" seus atletas. Ora! Nós temos que ser mais realistas e enfrentar os problemas como eles o exigem: com maturidade e discernimento. Se o exame comprova o uso desta ou de outras drogas é porque o jogador fez, sim, o uso delas de alguma forma e em alguma ocasião. Como e porque haveria
uma contaminação do material colhido—outra desculpa mais que esfarrapada—se os interessados acompanham cada passo do processo e em caso de violação dos conteúdos, automaticamente se tornam inválidos?. Os motivos que levam alguém a ter contato com drogas não interessam a ninguém, a não ser à família, e suas conseqüências são exclusivamente dele. Todos nós respondemos por nossas ações perante a sociedade que vivemos, já que atingindo a idade adulta somos vistos como independentes e estamos sujeitos ao crivo cível e criminal das regras sociais. E não estou aqui para criticar o atleta, pois cada um faz de sua vida o que bem entende e busca as mais diversas formas de fazê-la ser agradável, seja como for. Não é o tipo de consumo que gostaria que meus filhos dele fizessem uso, mas sempre vi a descriminalização da utilização de drogas como uma forma mais coerente de encarar esta epidemia social. Reconhecendo a sua extensão, teríamos mais capacidade de ao menos controlá-la. O que não devemos nunca é nos esconder da verdade, por mais dolorosa que ela seja. Temos casos semelhantes no passado e citaria um que muito me marcou e que acompanhei com muito carinho, pois era um atleta do Corinthians nos anos 90— o jogador Dinei. Com muita honradez e de cabeça erguida, ele assumiu o uso de cocaína, sofreu as conseqüências e recuperou seu espaço. Demonstrou que o mundo do futebol não é e nunca foi uma ilha de pessoas infalíveis e que a filosofia paternalista do sistema jamais vai evitar que outros casos semelhantes voltem a ocorrer. Ao contrário; quando derem a responsabilidade dos próprios atos aos atletas, estas coisas se tornarão muito mais raras.
Uniformização do jogo
Pois é, usando ou não substâncias proibidas, o fato é que o jogo de futebol passou—lá nos idos anos setenta—a ser então uma associação equânime de técnica e física sendo que, eventualmente, a equação poderia pender para a última. Nos dias de hoje um jogador de futebol atinge uma quilometragem de duas vezes e meia (em média) àquela de 1970, o que permite uma maior mobilidade do atleta que passou a ocupar muito mais espaços no gramado de jogo. Com isso, o futebol passou a apresentar características muito diferentes: mais contato físico, mais infrações, mais interrupções e menos técnica. E é o aspecto técnico que mais perdeu, pois apesar de ainda podermos ver jogadores de grande talento como Ronaldinho gaúcho, Zidane ou mesmo Robinho, as suas ações são muito mais limitadas que há trinta anos atrás. Os jogos de futebol se tornaram mais previsíveis e repetitivos, onde o surgimento de um gol, o mais das vezes, é quase que um acidente de percurso pois as equipes em geral possuem preocupações defensivas que extrapolam em muito as parcas estratégias ofensivas. O gol no futebol de hoje, fazendo uma comparação com o trapézio de circo, é semelhante a uma queda do trapezista. Isto é: todos os movimentos são treinados à exaustão e assim se consegue atingir um ponto em que os erros (e a criatividade) são raros, mas quando eles acontecem provocam a queda do artista. O mesmo se dá no futebol atual: o gol ocorre geralmente quando existe algum acidente ou erro do adversário. Estimulando ainda mais esta tendência à uniformização do futebol, temos hoje uma intercambio entre as várias escolas e culturas futebolísticas que não existia décadas atrás. Naquele tempo os times e seleções da Europa, por exemplo, pouco conheciam das equipes sul-americanas porque os meios de comunicação por imagem eram incipientes e os contatos raros. Assim, a cada encontro se poderia enfrentar muitas novidades em relação aos jogadores e mesmo às estruturas táticas. Com a melhoria das comunicações intercontinentais esta distância entre o velho e o novo mundo foi diminuindo, mas mesmo assim as escolas tradicionais ainda davam pouco valor à pesquisa sobre os adversários o que chegou a provocar absurdos como o desconhecimento da seleção brasileira em relação
à Holanda de 1974. Poderíamos dizer que esta equipe holandesa foi a que nos mostrou a mais revolucionária estruturação tática de todos os tempos. As constantes troca de posições da maior parte dos jogadores, a ocupação de todos os espaços, a marcação pressão em bloco— independente de onde estivesse o jogador adversário que portasse a bola, uma extravagante linha de impedimento que se movimentava segundos antes do lançamento ou logo após a devolução da bola em direção ao campo inimigo após um escanteio e a técnica apurada de alguns de seus jogadores como Cruiff—o chamado futebol total–, nos ofereceram uma raridade em termos de variação tática e isto incomodava tanto os adversários que estes pareciam perdidos em campo na busca de soluções para os problemas que a equipe holandesa lhes apresentava. Já se percebia no mundial da Alemanha 74 uma boa diferença de desempenho físico dos jogadores em relação ao passado. E a equipe holandesa foi a sua maior representante pois o seu ritmo de jogo não poderia ser executado com perfeição por jogadores limitados fisicamente. Outro time que também fez história sem no entanto chegar a vencer um mundial foi a seleção brasileira na Espanha em 1982. Sem apresentar tanta mobilidade como o time da Holanda de 1974, este time brasileiro formado quase que inteiramente por jogadores de grande capacidade técnica como Falcão, Zico, Cerezo, Leandro, Junior e outros, aplicava um rodízio entre seus jogadores de meiocampo que confundia os adversários já que ninguém possuía um posicionamento fixo e as alternâncias eram constantes. A associação entre individualidades especiais e uma estrutura coletiva muito boa deu ao time brasileiro de 82 uma força estrutural rara. A derrota daquela seleção, no fatídico jogo de Barcelona, para a Itália—que acabou se sagrando campeã do mundo–, foi um duro golpe na forma brasileira de jogar que aquele time tão bem representava. Naquele instante começava a se dar ênfase, mais do que até então, ao futebol de resultados pois o negócio futebol crescia assustadoramente e recursos financeiros sempre correm atrás dos
vencedores mesmo que oferecendo espetáculos de pior qualidade. O futebol brasileiro, a partir dali, jamais seria o mesmo. Ainda que inconscientemente muitas vezes, passamos a tentar nos aproximar do pragmatismo europeu. Com isso, nosso jogo passou a ser mais racional com estruturas táticas mais rígidas e acabou perdendo um pouco da sua identidade sem conseguir assumir uma postura compatível com os objetivos propostos já que não temos como ser mais organizados ou dependentes de planejamento definido com antecedência. A inter-relação e o maior contato das várias culturas esportivas que vemos hoje também colaborou para isso. Como os melhores jogadores brasileiros se transferem cada vez mais cedo para a Europa, eles adquirem com mais facilidade estímulos desta sociedade mais madura e definida o que faz com que atuem de uma forma um pouco mais próxima do estilo europeu onde a força física é um parâmetro muito valorizado. Com isso, mesmo em um futebol que tradicionalmente sempre dependeu do talento para se destacar, ocorreu uma transformação radical na forma de ver o jogo. Mesmo aqueles jogadores que ainda não saíram do Brasil têm uma proximidade muito grande com os principais torneios europeus através dos diversos meios de comunicação e, assim, sofrem influencia direta desta cultura. E esta é uma via de dois sentidos. A verdadeira promiscuidade cultural provocada pela globalização dos diversos segmentos sociais atinge em cheio o meio do futebol tornando-o uniforme o suficiente para encontrarmos poucas diferenças quando praticado em nações diferentes. O futebol se encontra, portanto, em um estágio onde as fronteiras praticamente não existem e a convivência entre culturas muito diferentes é uma realidade. Principalmente na Europa que, acompanhando o crescimento econômico do setor, atraiu para seus países o que havia de melhor no resto do planeta. Os maiores e melhores jogadores do mundo estão em equipes européias que assim valorizam as suas competições e geram cada vez mais riquezas.
Crise e mudanças à vista
Porém, já se percebe em algumas regiões uma tendência a que as dificuldades financeiras dos clubes assumam proporções incontroláveis por culpa de más administrações e mesmo por certo distanciamento do público. Este afastamento de parte da torcida freqüentadora dos estádios deve-se a várias razões. O excesso de competições e por conseqüência de partidas de quase todos os times, o exagerado número de emissões televisivas que tentam fazer frente aos custos cada vez maiores da manutenção das estruturas dos clubes, o preço dos ingressos cada dia mais caros e aquilo que considero o principal: a cada vez menor atratividade do jogo. Talvez seja prematuro discutir este assunto, pois ainda não está claro para muita gente o que há de vir no futuro, mas tenho convicção que o futebol um dia ou outro terá que enfrentar o desafio de adaptar-se à realidade física dos tempos modernos—e que deverá proporcionar aos atletas progressivamente mais e mais potencia e resistência física. Chegará o dia em que não teremos mais jogo. Não teremos mais espaços para os atletas pensarem e muito menos para executarem as suas jogadas. O contato físico será extremo e as interrupções acabarão por impedir que qualquer coisa de bom seja visto em uma partida de futebol. O talento de nada servirá e a criatividade e a beleza estética do jogo desaparecerão no caminho já que os grandes jogadores não mais existirão. Todos os atletas possuirão como principal qualidade a capacidade energética, a força e a potencia físicas. Habilidade será um parâmetro secundário e muitas vezes desnecessário para o futebol do futuro. Pode parecer uma previsão apocalíptica, mas assim como o futebol se transformou de um esporte de elite em extremamente popular, também poderá perder o seu imenso público caso não se modernize. É claro que por enquanto ele não tem concorrentes para lhe fazer frente, porém é necessário que se
vislumbre as rápidas transformações pela quais estamos passando e que poderão oferecer em um futuro bem próximo opções mais atraentes que um jogo truncado, feio, violento e sem emoções. Existem algumas ações já discutidas há algum tempo que me parecem óbvias para enfrentar este dilema que se avizinha. Uma delas seria limitar a área de impedimento o que elevaria a metragem disponível para a movimentação dos jogadores, outra seria restringir o número de infrações por atleta e por equipes, mas nenhuma delas, a meu ver, provocaria a ruptura que vejo necessária. Acredito que para resgatarmos os espaços que eram disponíveis décadas atrás teremos que ou aumentar a área de jogo—o que me parece inviável logística e economicamente—ou diminuir o número de participantes de um jogo de futebol. Proporia até que este número passasse a ser de nove atletas por equipe. Assim, estaríamos retornando aos anos setenta quando relativamente tínhamos muito mais liberdade para que cada um dos jogadores pudesse desfilar os seus dotes técnicos o que permitiria um jogo muito mais bonito.
COMO ME TORNEI JOGADOR DE FUTEBOL
O jogo é uma batalha
Observando uma partida de futebol de uma altura suficiente para que pudéssemos perceber apenas alguns pontos distribuídos pelo retângulo delimitado pelas linhas externas, poderíamos imaginar que ali, naquele espaço, uma verdadeira batalha estivesse se realizando: dois grupos de indivíduos com o mesmo número de combatentes, vestindo as cores de sua nação, buscando ganhar espaço na área defendida pelo inimigo e tendo como alvo a fortaleza representada pela baliza do gol. Eles são soldados treinados para tentar colocar o inimigo de joelhos, destruir a muralha e derrubar o rei. As estratégias para tanto são as mais variadas possíveis e as armas utilizadas dependem fundamentalmente do talento e da imaginação dos combatentes. Em cada grupo ali representado poderíamos encontrar formas de expressão características de culturas diferentes. Umas mais conservadoras, outras reacionárias e algumas progressistas. Isto dependerá da filosofia de cada esquadrão, das convicções de seus comandantes e da ideologia. Porém, pelo número limitado de soldados, existe aqui uma motivação lógica pela valorização da ação individual em detrimento da coletiva. Um único arteiro que com sua maestria e firmeza derrubasse mais de um oponente poderia determinar a vitória para suas cores. Afinal, como o único objetivo deste confronto é chegar à fortaleza, quem quer que seja que consiga atingir este objetivo determinará a derrota do adversário. Uma única e decisiva ação
poria por terra toda a expectativa do outro lado e imporia a esta uma inevitável derrota. Por isso é fundamental que possamos conhecer estes bravos combatentes e saber que tipo de treinamento eles recebem e quais as características que mais influenciam suas performances. Mas antes, temos que ter em conta que historicamente percebemos grandes mudanças nestas últimas décadas na forma e no conteúdo deste tipo de batalha.
O futuro jogador de futebol no Brasil já nasce pronto. Não que todos os brasileiros tenham o dom de tocar na bola como Ronaldinho ou a visão de jogo que possuía Zico. Eu mesmo, dentro da minha família—a qual extraordinariamente ofereceu dois atletas para a seleção brasileira em épocas distintas (82 e 94) e como capitães de equipe–, tenho um outro irmão que jamais possuiu qualquer intimidade com a bola de futebol chegando ao cúmulo de não conseguir acerta-la mesmo que estivesse parada e "oferecida" à sua frente. Neste caso a seqüência de aminoácidos na confecção do DNA (quem sabe, um único par) o levou para um lugar bem distante do campo de futebol. Assim como ele—e ao contrário do que muita gente imagina—possuímos milhares de brasileiros que jamais chutaram uma bola, fizeram um gol, visitaram um estádio ou mesmo assistiram a um jogo deste esporte.
Nem todos têm talento
Eu tenho um amigo, por exemplo, que é uma figura de extrema sagacidade e, por isso, sua trajetória não poderia ser comum. Só que possui uma característica muito peculiar: sempre encontra imensas dificuldades de chegar onde quer por ser demasiado exigente para com suas expectativas e, digamos, apresentar certas dificuldades nas relações com a sociedade contemporânea. Principalmente quando o assunto é futebol—uma de suas grandes paixões. Estudou sociologia. Admirador do professor Florestan Fernandes se tornou adepto de suas convicções. De Fernando Henrique Cardoso que mais tarde se tornaria presidente do Brasil (1994-2002) não podia nem ouvir falar. Até hoje, creio. Acabou não se tornando o sociólogo que sonhara. A necessidade de se virar e de buscar novos horizontes o levou para longe dos livros. Dos da faculdade é importante salientar – até hoje é um devorador de sebos literários. Apesar dos conhecimentos adquiridos não encontrou outra saída que a de se afastar da área a que dedicara bons anos de sua vida. Foi cair no meio artístico. Como não cantava, não atuava e não dançava, resolveu dirigir. Cinema. É um brilhante cineasta de sua geração. Pouco valorizado é verdade. Assim como o fora nas salas de aula. Dizem até que seu trabalho foi muito influenciado por Glauber Rocha, o pai do cinema novo brasileiro. Eu não duvido, pois tudo é possível naquela mente. Sua genialidade e criatividade possibilitam vislumbrar até este exagero. Rodou uma dezena de curtas ou longas-metragens que lhe deram um determinado espaço no meio. É certo que o público que teve acesso a suas obras não foi lá muito expressivo, mas isso é coisa menor para quem crê no que faz. O único problema é a eterna falta de verbas para rodar as películas e pagar as próprias contas. Dinheiro, ora bolas, para que serve? O importante é correr atrás do ideal de vida. E assim ele fez sua caminhada até aqui. Com alguns desvios de rota é verdade. Aliás, falando em rota é importante salientar que temos por aqui um movimento para tentar coloca-lo no livro dos recordes. É que ele, até prova em contrário, é o indivíduo mais atropelado da
história da humanidade. Eu sei que parece brincadeira, mas é a mais pura verdade. Vinte vezes! E olhem que continua vivinho da silva. Difícil é entender como é possível que alguém tenha tamanha atração por veículos. Qualquer um, desde que se movimentem. Carroças, carros, caminhões, motos, etc. Tudo que é tipo. Haja sorte para sobreviver a tantos acidentes. O pior é que na maioria das vezes ele é o culpado. Quase um pedestre suicida. Pensamos em lhe oferecer um seguro contra acidentes contemplando as avarias em terceiros. Mas que seguradora aceitaria um cliente com este passado? Nenhuma arriscaria tanto. A causa disso tudo é uma gigantesca alma distraída. Vive com a cabeça nas nuvens. Os pés, quase. Outro dia esqueceu onde morava. Pode? Foi um deus nos acuda para ele poder encontrar alguma alma caridosa que o encaminhasse ao endereço correto. Acordou (ou ao menos tentou acordar) uma dúzia de amigos que, por não acreditarem no fato, pouco ou nada ajudaram. Alguns até atrapalharam induzindo-o a atravessar a cidade no sentido contrário. E ele nem questionava. Depois de horas de sufoco pode encontrar o merecido descanso. Uma verdadeira epopéia. Mas o que ele sempre quis ser e tentou, foi jogar futebol. Dizem que possuía pouca ou nenhuma habilidade para o esporte. Achei que de uma forma geral havia nisso certo exagero. Quem passou por vários times amadores da região não pode ter sido tão ruim. Resolvi investigar. Procurei nos arquivos a sua presença. Estava lá. Sempre como centro-avante. Quatro campeonatos. Quase todos os jogos. Nenhum gol. Nenhum gol! Onde já se viu alguém que jamais fez um gol? Incrível! Não podia dar certo mesmo. Pois é, talvez só nas partidas da fase final de Copas do Mundo é que tenhamos a participação destes, digamos, alienados. Ou seriam alienígenas? Em uma nação que respira e transpira futebol, bem que eles poderiam ser vistos como seres do outro mundo.
O nascimento
Logo ao nascer o brasileiro do sexo masculino é largamente estimulado a conhecer rapidamente esta paixão nacional. Seus primeiros presentes ou lembranças, além daquelas ofertadas em função de suas necessidades de se vestir, de abrigo e de higiene, são a micro-camiseta da equipe do coração do pai que certamente concorrerá com uma similar de outras cores que o tio ou o avô lhe oferecerão imediatamente, e a bola—bola esta que o acompanhará possivelmente pelo resto dos seus dias. Não faltarão também meias, chuteiras, shorts – tão pequenos que poderiam servir a um boneco minúsculo—e, eventualmente, até uma bandeira que poderá cobrir mais da metade da parede do quarto da maternidade. Na porta do apartamento o sublime e indiscreto símbolo do time preferido dos pais. Nos primeiros anos de vida, é comum que cada família reserve um determinado cômodo da casa para que o garoto possa brincar com o que lhe aprouver e jamais faltará a presença da bola o que invariavelmente provocará uma mudança drástica na decoração local. Marcas em círculo por todas as paredes do quarto poderão ser encontradas em poucos dias.
Dificuldades iniciais
Morávamos quando criança em uma ampla casa que infelizmente não tinha um quintal ou um jardim onde pudéssemos – eu e meus irmãos—exercer este fascínio que a bola já nos provocava. Então encontramos a solução utilizando a garagem de carros para nossos confrontos infantis. O problema é que a porta externa era feita de vidros retangulares que pouca resistência oferecia até para os fracos chutes de nossas finas pernas. Durante algum tempo, meus pais ainda se preocupavam em repô-los prontamente, mas como era inevitável que eles voltassem a se quebrar, houve uma hora em que desistiram e a fachada de casa passou a ter um portão de barras de ferro intercaladas e sem nenhum enchimento—totalmente vazada para seu interior. Depois deste período, que poderíamos definir como caseiro, do desenvolvimento de nossas habilidades fomos gradativamente nos libertando das fronteiras familiares e alcançamos as ruas em torno da residência, mas com o crescimento da cidade esta prática passou a ser relativamente perigosa e resolvemos enfrentar os padres católicos que habitavam uma igreja ali perto. Esta possuía uma extraordinária área para nossas partidas bem em frente a sua entrada principal quase do tamanho de uma quadra de futebol de salão que se jogava naquele tempo—com bola pesada e dimensões menores que as de hoje em dia. Nos primeiros meses, eles tentavam nos amedrontar para que não voltássemos a utilizar aquela área, mas como insistíamos em retornar a cada final de tarde resolveram tomar
uma atitude mais drástica: cercaram a área com muro de cerca de um metro de altura e "plantaram" no piso dezenas de blocos de concreto. Mesmo com todas estas barreiras não desistimos de praticar o nosso futebolzinho. O único e grande problema era evitar tropeçar naquelas armadilhas e, pior, eventualmente chuta-las inadvertidamente o que provocava grandes lesões nos dedos do pé que posteriormente seriam devidamente punidas com uma bela advertência ou mesmo pequenas surras por nossas mães. Aqui devemos perceber que este tipo de obstáculo—ao contrário de servir como impeditivo para a prática do futebol—provoca uma importante evolução na capacidade de jogar. Tendo que estar o tempo todo preocupado com aquilo que nos espreita no chão dividindo a atenção com a bola do jogo, estamos desenvolvendo em profundidade a nossa capacidade de enxergar tudo que acontece no espaço do jogo. Aumentamos a nossa sensibilidade e acuidade óptica através do estímulo de todo nosso campo visual—um olho no peixe e outro no gato, como se diz por aqui, para quando devemos cuidar de alguma coisa importante—como a namorada, por exemplo. Tenho convicção que quanto mais irregular o piso em que costumamos jogar neste período de desenvolvimento de nossas habilidades – ainda que seja extremamente desgastante e perigoso praticar nestas condições–, mais argumentos técnicos nós conseguimos descobrir, o que torna mais fácil à execução da enorme gama de movimentos que este esporte nos exige. Não tenho dúvidas que indivíduos que chegaram ao exagero de jamais deixar de controlar uma bola mesmo que esta tenha sido jogada inadvertidamente e distante da posição ideal para dominá-la, tenham enfrentado pisos nas piores condições possíveis. Garrincha, talvez o jogador que mais encantou as platéias pelo mundo afora depois de Pelé, teve como escola o campinho de Pau Grande, sua terra. Este não possuía um gramado e sim era constituído por inúmeras irregularidades distribuídas sem lógica pela erosão provocada pelas chuvas, vento ou pelas solas dos pés dos garotos que por lá desfilavam a sua vontade de jogar futebol. Tinha
verdadeiros abismos nas suas laterais que tinham que ser evitados para que a pelota não escorresse por sua encosta e o autor a tivesse que ir buscar com todo o custo que isto lhe traria como bem citou Ruy Castro em sua biografia que tanta celeuma causou. Pelé, o maior jogador de todos os tempos, também deve ter enfrentado campos horríveis. Isso sem contar os defensores adversários que jamais se conformam em serem desmoralizados pelos moleques quando estes apenas haviam perdido as fraldas. Uma mangueira no centro de um campo não era algo difícil de encontrar por aqui naquele tempo. Desviar do imenso tronco e de um sem número de suas raízes que se esfregavam no chão fazia parte do repertório que tínhamos que possuir. No meu colégio, o Marista de Ribeirão Preto, havia uma grande área frutífera que se prestava às nossas partidas de futebol nos intervalos das aulas. Havia muitas mangueiras e abacateiros que geravam uma imensa área assombreada que nos protegia do calor escaldante da cidade—por aqui muitos dizem convictamente que temos somente duas estações no ano: o verão e o "inferno". Pois não é que quando não tínhamos bolas ou um simples arremedo do que poderia se parecer com ela, abríamos um abacate verde e utilizávamos o seu caroço como bola. Obviamente que a resistência da esfera não era das melhores e em poucos minutos ela se partia em duas ou mais partes. E a cerimônia da abacatetomia recomeçava. Penso que é muito pouco provável que, por nossa ganância pelo jogo, alguém tenha retirado dali algum dia uma fruta madura que seja. Talvez muita gente ao acompanhar este relato se espante um pouco com a novidade, mas todo mundo que já visitou praias por este mundão afora tem pelo menos uma idéia do quanto é difícil jogar futebol naquele tipo de piso. Principalmente quando o sol está a pino e a temperatura da areia está pela hora da morte—haja cascão para suportar. Pois um terreno assim desafiador é extraordinariamente positivo para se encontrar novidades na solução dos problemas como correr com a bola, passa-la ou chuta-la.
Não consigo imaginar que os garotos europeus possam ter tido experiências semelhantes a estas. Um simples passeio pelo Hyde Park ou qualquer outra praça ou jardim da Noruega à Itália ou da Áustria à Escócia nos oferece uma imagem de perfeição que não encontrávamos naquele tempo nem mesmo em nossos mais conhecidos gramados como o Maracanã. Uma bola correndo nos terrenos europeus devia se deliciar coma maciez e uniformidade de sua grama e pouco exigiria dos pés dos talentos do velho mundo. Isso sem dúvida deve ter limitado a capacidade de criação da imensa maioria, pois em geral nós humanos só desenvolvemos nossos sentidos ou nossa potencialidade quando exigidos. Um deficiente visual possui uma capacidade auditiva muitas vezes maior que alguém que tem visão de lupa. Eu mesmo creio que alcancei um grau de excelência técnica tão especial por culpa da minha absurda deficiência física fruto de pouca massa muscular e falta de tempo para treinamentos que pudessem desenvolvê-la na época certa. Só com 23 anos, já graduado em Medicina, é que fui ter a chance de trabalhar a minha musculatura em período integral. Muitos anos eu perdi neste aspecto—os mais importantes da vida de qualquer atleta, mas ganhei muito em habilidade.
Descoberta do mundo real
Após este processo de nascedouro dos jogadores de futebol é hora de nos aproximarmos de alguma coisa um pouco mais organizada:
um time de verdade que se reúna com certa freqüência e que enfrente outros grupos igualmente organizados seja em jogos esporádicos ou em competições com principio, meio e fim. No Brasil de quarenta anos atrás tínhamos algumas possibilidades, mas em número bastante limitado. Uma destas estruturas era o chamado campeonato amador do estado. Este torneio tentava agregar o maior número de pessoas na mesma competição. Para tanto, não havia limitações quanto à idade dos participantes. Encontrávamos desde adolescentes recém portadores das primeiras pelugens no corpo até adultos barbados com mais de vinte anos de "carreira". É claro que nos municípios havia os torneios de infantis e juvenis que ofereciam aos jovens de 13 a 20 anos um tipo de reserva de mercado, mas a partir do instante em que a competição passava a ser regional o envolvimento com outras categorias era inevitável. Então víamos equipes de garotos que se destacavam e conseguiam se classificar para enfrentar times de outras cidades tendo que encarar ambientes mais experientes e agressivos—e geralmente menos talentosos. Mesmo as equipes de base dos times profissionais passavam por este processo. Isto nos oferecia uma possibilidade impar de novas experiências mesmo que correndo alguns riscos. Amadurecíamos mais rapidamente e nos sentíamos mais fortes para enfrentar as dificuldades da vida inclusive no futebol. As lições que aprendíamos nas ruas jamais poderiam nos ser oferecidas pela família. Vivíamos com pessoas de todas as camadas sociais e tínhamos uma visão do mundo real que extrapolava tudo que nos fora ensinado. Eu que estava sendo criado em um ambiente de classe média, recebendo educação em colégios privados tive ali a chance de conhecer um Brasil que nem de longe imaginara anteriormente. Quando freqüentava a casa de alguns dos meus colegas, via com meus próprios olhos e sentia no meu estômago o quanto era difícil a situação sócio-econômica daquelas famílias. A comida era pouca e de baixa qualidade, as condições de higiene precárias, e muitas vezes o pai encontrava-se desempregado o que piorava as coisas. Mesmo assim havia um brilho nos olhos de todas as crianças, uma alegria de viver que sempre me impressionou. Era
como se todos os problemas fossem facilmente contornáveis, pois sempre havia um pomar por perto ou um vizinho de bom coração para oferecer meios para a subsistência de todos.
Raio de Ouro
O que eu poderia chamar de meu primeiro time se chamava Raio de Ouro. Aproximei-me um pouco por acaso—tinha apenas onze anos. Um dia, saindo do colégio, fui convidado por um colega a assistir um treino de uma equipe que acabara de se forma e que ainda buscava jogadores para a sua formação. Aceitei e nós passamos no campo antes de nos dirigirmos para casa onde nossas mães nos esperavam. Este campinho ficava perto de onde eu morava. Não era exatamente um campo de futebol e sim uma quadra reservada para ser uma praça só que esta ainda não fora implantada. As traves eram móveis, pois já naquele tempo existia quem se preocupasse de levá-las para casa para talvez usa-las como combustível nos velhos fogões à lenha. E estas traves móveis tinham um dono que era vizinho dali. Quando havia um jogo ou treino, alguém tinha que ir até a residência dele para pedir por elas—pedido muitas vezes negado não se sabe exatamente por que. Bem, neste dia as traves estavam por lá. Sentamo-nos na lateral do que imaginávamos fosse o limite do gramado e ficamos aguardando a chegada dos "atletas". Estes foram chegando vagarosamente, sozinhos ou em grupos de dois ou três, carregando nos ombros suas velhas chuteiras—era raro encontrar quem possuísse chuteiras
novas, ou por falta de recursos financeiros ou porque havia uma cultura de só se utilizar aquelas que já estavam amaciadas—todos se referiam a elas como lasseadas que viria de lassear, um verbo raramente utilizado no nosso português que quer dizer frouxo, afrouxar.
Perfil social
Já neste laboratório de jogadores poderíamos perceber que a imensa maioria era de negros ou mulatos. Existe aqui uma relação estreita com a distribuição racial no nosso país formada basicamente por descendentes de africanos apesar da presença importante de várias colônias de praticamente todos os continentes. Para estes descendentes de africanos, no entanto e em função de sua situação social que infelizmente persiste até hoje, o futebol era uma das poucas chances de ascensão na pirâmide econômica social. Desde, é claro, que possuíssem talento para o jogo. A elite, apesar de controlar o gerenciamento do negócio, pouco se interessava em ocupar os espaços existentes no trabalho dentro do campo. Os jogadores de futebol, assim como as dançarinas de cabaré, os atores e os que militavam nas artes plásticas, eram pouco valorizados pela sociedade. Portanto, esta profissão popular era uma grande
oportunidade para que os jovens mais carentes pudessem melhorar de vida e assim criar perspectivas positivas para suas vidas e de suas famílias. O grande time do Santos dos anos sessenta, para termos uma idéia, possuía praticamente todos os seus titulares da cor negra que era realçada por uniforme que de tão branco se parecia com a neve. Ainda não tínhamos a explosão demográfica dos grandes centros urbanos que foi o grande fator desencadeador do nascimento das favelas. A falta de uma política rural adequada e a indução à industrialização atraiu milhares de pessoas, principalmente do nordeste brasileiro—mais atrasado economicamente e eternamente assolado pela seca e pelo descaso das autoridades—para as maiores cidades do país em busca de trabalho e subsistência. Inclusive o presidente Lula foi um dos retirantes que abandonou a terra natal na esperança de uma vida melhor. Infelizmente, esta migração desenfreada ao invés de oferecer oportunidades criou mais e mais dificuldades, pois na cidade eles não encontraram facilidades e tiveram que buscar soluções criativas para alguns dos seus inúmeros problemas. E foi a falta de recursos para moradia e o abandono do Estado brasileiro que os empurraram para a ilegalidade invadindo áreas públicas ou não para instalarem suas famílias. E foram nas favelas—este símbolo cruel da nossa realidade econômica—que muitos dos nossos grandes jogadores cresceram. Viver, mesmo que eventualmente, a realidade de uma favela é um fato promotor de certa ojeriza de parte da sociedade brasileira: aquela abastada que dá as costas para os imensos problemas sociais que vivemos. Conhecer a miséria, o desencanto e o abandono parece que jamais estarão nos planos de muita gente. É como se fossem, os favelados, gente que não é como gente. Seres de origem duvidosa e com aparência repugnante. Um outro mundo. Uma outra espécie. Este sentimento, tão endemicamente presente na consciência de tantos, é o pleno exercício da rejeição a que esta parte da nação está submetida. Uma fatia imensa de nosso povo que é desprezada de forma torpe. Esta imagem, no entanto, é mais que falsa. Nestes bolsões em que se reúnem milhões de famílias, cujo único objetivo e
concessão é resistir, há muita inteligência, ética e sensibilidade— talvez muito mais que nos salões da riqueza que nos faz um dos piores países em distribuição de renda do planeta. São pessoas que sabem o quanto vale um abraço, o sorriso e o pleno exercício da solidariedade. São mais gente que a gente que lhes despreza e esconde o olhar quando os enfrenta em qualquer esquina da vida. Gente indigente é verdade, mas por culpa de uma gentalha que se apossa de tudo que seria parte da divisão necessária para colocar em quase igualdade a todos os que se avizinham. Uma indigência somente material, mas que por isso provoca a repulsa. Como se isso fosse a posse mais importante que poderíamos carregar. Mas são de uma dignidade espantosa.
O morro no asfalto
Quando me vi em pleno Rio de Janeiro nos anos 80, empolguei-me em desvendar possíveis segredos escondidos nos morros. Não, não havia segredos. A salgada realidade nem a isso permite. Mas aquela gente sabe como poucos o que é vida e como ela deve ser aproveitada, mesmo que ingrata. Fiz alguns amigos que moravam na Cruzada. Aquelas construções que substituíram uma antiga favela na Gávea, bem pertinho ao Flamengo. Uma única rua que é geralmente evitada por todos. Em um dia de festa—meu aniversário, se não me engano—convidei-os para fazer um som na minha casa. Quase todos eram músicos. Eu morava na Barra da Tijuca, bairro de alto padrão, em um condomínio que tinha no controle de entrada dos visitantes a sua maior arma contra a violência urbana. Quando eles chegaram ao portão de acesso dentro de um carro velho e amassado com oito pessoas dentro além dos instrumentos para o samba que nos esperava, assustaram os seguranças e porteiros. Neste instante deu
se um diálogo muito interessante ao interfone entre um dos guardas e eu que havia sido chamado. –Doutor, há um veículo aqui na entrada com um grupo de negros com muitos instrumentos e que dizem que vão à sua casa. –É verdade, respondi. –O senhor tem certeza? Replicou, de alguma forma incomodado. –Sim, defini a questão. Isto demonstra bem o quanto de discriminação a cor da pele e a situação econômica provocam até entre os iguais quando estão defendendo os seus empregos.
Churrasco especial
Em uma outra ocasião fui, de madrugada, levar dois deles em casa. Atravessar o túnel Lagoa-Barra insinuando-se pela Rocinha, que de roça não tem nada, nos escancara as diferenças. Menos mal que a vista é linda. Lá de cima, é claro. Os paredões, as cercas, os monitores de TV e a segurança particular para os endinheirados; a liberdade e o visual para os desprotegidos. Quanta incoerência! Ao chegar àquela viela que cheira a gente encontramos um grupo fazendo um churrasco na calçada. Não havia churrasqueira de alvenaria, muito menos piscina—complemento natural dos de baixo-, só uma imensa vontade de saborear a autonomia. Convidei-me ao manjar. Não consegui me retirar enquanto os primeiros raios solares não houvessem surgido. Era muita experiência e sabedoria para deixar de aproveitar. Com os ouvidos atentos e os olhos em riste, deleitei-me com tudo que me cercava. Inclusive com a carne que poderia ser de algum animal pouco afeito a servir de alimento nesta parte do mundo. Esta possibilidade, aliás, nem se apresentou—
estava deliciosa. Foi uma noite e tanto. Meses depois, resolvi, como voluntário, oferecer meus préstimos à gente do Pavãozinho. Encravada nas encostas atrás de Ipanema, esta sociedade tem seus próprios limites. Na primeira visita, fui encaminhado morro acima por uma espécie de adido da comunidade. Percebi que minha presença era motivo de estranheza. Mas foi só desta vez. Na seguinte oportunidade já me sentia protegido e respeitado. Muito mais que no nível do mar. Quem, de alguma forma, é por lá recebido, tem sempre a mesma impressão. Principalmente para quem jamais imagina que isto seja possível. Lá, busca-se a paz. Aqui, tenta-se compra-la. Pois é, parece incrível que a riqueza não a produza. Pelo contrário! Até porque este não é, e jamais será, um produto de consumo destes que são oferecidos nas lojas de grife. Grifes que vêm de fora, é claro. As nossas são um pouco mais humanas—de pele e osso diria. Têm, às vezes, pernas tortas, desnutrição na infância ou dentes em desalinho. Mas são as que podemos ter e que encantam o mundo. São agredidas em demasia, mas puderam sobreviver. É que esta gente descobriu a arte de se fazer ver. É gente que desceu do morro com a cara e a coragem. É gente! Fora de lá, é nos campos de futebol que se tem a chance de conhecer um pouco da vida desta gente tão especial, feita não de conhecimento e sim de emoção. É verdade que hoje o comércio de drogas faz parte da vida desta gente. Porém, não podemos nos esquecer que é este negócio que permite existir muitos dos serviços que o Estado deixou de oferecer a quem lá mora. Ainda que respeitando valores muito diferentes de quem habita na beira-mar. E se analisarmos com atenção, existem poucas chances de uma vida melhor para eles. O futebol é uma delas. Poderia ser também para as meninas. Será?
MULHERES NO FUTEBOL BRASILEIRO
Machismo
"(Venho) solicitar a clarividente atenção de V.Ex. para que seja conjurada uma calamidade que está preste a desabar em cima da juventude feminina do Brasil. Refiro-me, Senhor Presidente, ao
movimento entusiasta que está empolgando centenas de moças, atraindo-as para se transformarem em jogadoras de futebol, sem se levar em conta que a mulher não poderá praticar este esporte violento, sem afetar, seriamente, o equilíbrio fisiológico das suas funções orgânicas, devido à natureza que dispôs a ser mãe. Ao que dizem os jornais, no Rio de Janeiro, já estão formados, nada menos de dez quadros femininos. Em São Paulo e Belo Horizonte também já estão se constituindo outros. E, neste crescendo, dentro de um ano, é provável que em todo o Brasil estejam organizados uns 200 clubes femininos de futebol, ou seja: 200 núcleos destroçadores da saúde de 2.200 futuras mães que, além do mais, ficarão presas a uma mentalidade depressiva e propensa aos exibicionismos rudes e extravagantes." Este texto faz parte de uma carta datada em abril de 1940– e assinada por um cidadão brasileiro de nome José Fuzeira—que foi encaminhada ao Presidente da República Getulio Vargas. Aqui podemos perceber o quanto era difícil para a sociedade brasileira aceitar que as mulheres pudessem optar pelo futebol como um esporte a ser praticado. Puro machismo. Mas mesmo assim existem registros de partidas de futebol feminino em pelo menos três oportunidades no início do século XX: um evento beneficente visando à construção de um hospital para crianças pobres em 1913, um jogo entre senhoritas de dois bairros da zona norte de São Paulo em 1921 e torneios envolvendo mulheres do subúrbio carioca que formavam times como nomes criativos como Eva futebol clube em 1941 e que suscitou a acima referida reação do senhor Fuzeira. Pregava-se até a prática de esportes pelas mulheres desde que não houvesse contato físico, pois uma das questões mais presentes naqueles dias era a preocupação com a função materna. Acreditava-se que esportes que exigissem mais do corpo da mulher—e que as sujeitassem a sofrer traumas nos órgãos reprodutores—pudessem prejudicar a sua capacidade de procriar filhos fortes que pudessem engrandecer a raça brasileira. Isso sem falar da beleza das formas que sempre foi uma das qualidades
mais valorizadas nas mulheres brasileiras e que poderia ser transformada para pior se praticassem um esporte como o futebol. Ficariam com os músculos e quadris enrijecidos o que as tornariam mais masculinas. E aqui está a questão central. Todas as que tinham coragem de se apresentar para um jogo de futebol eram taxadas de sapatões (homossexual feminino). Às mulheres era dedicada uma gama específica de atividades onde elas poderiam expor as suas capacidades. Como por exemplo, a arte de costurar ou de cozinhar. Era inadmissível que elas tentassem assumir novas posições na hierarquia social. O papel predominante era o de dona de casa e das várias funções que este termo abriga. Fora disso, lhes era negado o direito buscar oportunidades e novas opções de vida. As duas primeiras partidas foram eventos isolados e não chegaram a provocar muita reação, mas o campeonato realizado no subúrbio do Rio de Janeiro em 1940 era por demais organizado para passar despercebido dos conservadores de plantão. O público que afluía a estes jogos já era em bom número—interessado principalmente na estética dos atletas—e a competição possuía até um produtor ou patrocinador que oferecia prêmios para as jogadoras. Com o aumento da divulgação a discussão se acirrou de forma incontrolável que envolveu o governo federal que até então pouco se preocupara com o segmento esportivo. Não havia legislação esportiva e tampouco algum grau de organização nacional para os desportos em geral. Finalmente, através de um decreto lei, o Presidente da República tomou a decisão de proibir alguns jogos—esportes não definidos—entre mulheres, pois estes seriam incompatíveis com a natureza feminina. O texto era bastante subjetivo, mas ficava claro que o objetivo era o de limitar a prática de apenas um determinado esporte: o futebol feminino. Em uma época em que as mulheres começavam a ocupar espaços que antes só cabiam aos homens e adquirindo direitos como o do voto, instala-se uma limitação para a prática desportiva que só poderia ter nascido em um regime fechado como o "Estado Novo" de Getúlio Vargas. Este gesto opressor desestimulou o recém
namoro das meninas com este esporte e interrompeu aquilo que seria o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil. Este esporte voltaria a sofrer a mesma agressão durante a ditadura militar que assumiu o poder em 1964 e só voltaria a ser jogado legalmente a partir de 1979. Temos então um longo período de quase 40 anos em que praticamente não houve a prática de futebol entre as mulheres em nosso país. Na década de 80, poucas competições existiam no território nacional. O principal torneio era a Copa Brasil que conheceu talvez a maior equipe de futebol feminino do país: o Radar, que conquistou a maior parte dos títulos deste período. Este time servia como base da seleção nacional que apresentava uma estrutura ainda incipiente. Aliás, como até hoje, pois jamais em tempo algum houve qualquer tipo de apoio concreto da Confederação Brasileira de Futebol para com este esporte. Mas, já se podia notar que possuíamos atletas de qualidade diferenciada. Com isso, gradativamente o esporte foi crescendo sem, no entanto haver um número expressivo de equipes, o que limitava e muito a evolução e a garimpagem de novos talentos. Mesmo assim, desde meados da década de 90, o Brasil se encontra entre as quatro maiores forças do planeta junto aos EUA, a China e a Noruega. Ainda assim, o preconceito e o descaso permanecem. Os poucos momentos em que existe alguma preocupação em estimular o futebol feminino no país têm relação direta com o desempenho da seleção nacional nas olimpíadas. Nas últimas competições olímpicas, as meninas tiveram atuações no mínimo semelhantes aos homens que são profissionais e que possuem um apoio infinitamente maior: as mesmas regalias que as seleções principais têm quando de torneios internacionais além de uma vasta redes de clubes onde podem desenvolver suas habilidades. Alguns destes atletas chegam a valer milhões de dólares no mercado mundial e mesmo assim não se classificaram para a olimpíada de Atenas.
Estereotipo feminino
Quando destes resultados olímpicos, as nossas classes dirigentes tentam inventar algum tipo de competição para dar vazão aos reclamos populares em prol das atletas, mas sempre com uma dose de descrédito que jamais permitiu que qualquer coisa acontecesse. Em 2001, logo após Sidney, houve uma tentativa de dinamizar esta modalidade no campeonato paulista, porém com uma máxima absurda que pretendia aliar a imagem do futebol à feminilidade. E todo o processo de escolha das atletas que iriam participar do torneio calcava-se em realçar a necessidade de que elas fossem belas e "gostosas". Os cartazes de divulgação do evento estampavam uma modelo trajando uniforme esportivo e mostravam uma clara mensagem de que se poderia jogar futebol e possuir características femininas. Como se as menos favorecidas pela beleza não fossem mulheres femininas. No fundo, permanece aqui o preconceito de que só joga futebol quem tem algo masculinizado em sua conduta e se tenta afasta-las dos campos mesmo que suas habilidades fossem muito melhores que as bonitinhas. Seria como afastar Ronaldo—fenômeno—dos gramados esportivos para que se pudesse escalar algum modelo internacional que tem como maior qualidade a beleza física. Lá atrás, tínhamos como pano de fundo, no preconceito contra as mulheres no esporte, a pretensa fragilidade e a incapacidade do corpo feminino de enfrentar diversos tipos de modalidades como o futebol. Agora, o que existe é uma grande dificuldade de conviver com o corpo atlético da mulher como se os padrões globais de beleza fossem imutáveis. Músculos maiores resultam em força mais desenvolvida. Será que os homens temem uma invasão feminina nesta área—uma das poucas tradicionais que ainda preservam—onde eles sempre reinaram? A resposta talvez só venha quando nos voltarmos para o nosso inconsciente. E talvez também seja por isso que cada vez mais percebamos
tentativas de tornar o vestuário feminino mais erótico utilizando a premissa de que o público masculino tende a aumentar o seu interesse pelos esportes praticados por mulheres em suas diversas modalidades. Foi o que aconteceu no vôlei em determinado momento com a tentativa de uniformizar os colantes das meninas deixando à mostra os ombros e as coxas. No entanto, atrás desta declarada filosofia de mercado existe a desvalorização das qualidades atléticas das meninas em detrimentos aos atributos físicos. Não é raro encontrarmos atletas que tem um discurso dúbio quanto ao seu corpo: enquanto reconhecem que devem possuir qualidades atléticas compatíveis com as suas especialidades como uma massa muscular mais desenvolvida que a maioria das mulheres não atletas, sonham com corpos esguios, pouca massa muscular, expressão frágil e todas as outras qualidades valorizadas pela maior parte da sociedade. No futebol ainda não chegaram estes reclamos quanto ao entorno das atletas—pelo menos no Brasil. Acredito que seja porque há pouca divulgação e o esporte não atrai grande público. Além do que, o tipo físico das que praticam este esporte não agrada a maioria dos homens brasileiros. E por falar em homens, outra grande dificuldade na nossa cultura é que não possuímos técnicas e as jogadoras tem que conviver com a dificuldade dos treinadores do sexo masculino em lidar com as particularidades da personalidade das meninas. Renê Simões, o responsável pela preparação da seleção brasileira de futebol nas Olimpíadas de Atenas, teve como principal preocupação a necessidade de entender o universo feminino. Dizia ele que entre as várias carências que possuía ao iniciar aquele trabalho estava a de ter poucos elementos sobre a realidade física das atletas e que as mulheres por serem extremamente detalhistas exigiam muitas vezes que ele permanecesse no gramado depois dos treinamentos discutindo pontos duvidosos de suas pretensões—o que raramente acontece com os homens. Entre as correlações com o futebol masculino, uma das maiores
dificuldades para as mulheres é a insistência das classes dirigentes em tratar este esporte de forma uniforme como se não existissem diferenças fundamentais na estrutura física de homens e mulheres. Estas são menos resistentes, possuem menos força muscular e são mais lentas, além de terem mais massa gorda. No entanto, o futebol jogado pelas meninas tem as mesmas características que aquele praticado pelos homens: o mesmo tamanho do campo, do tempo de jogo e do peso da bola. Com tanto descaso, criam-se dificuldades extras para as mulheres praticarem futebol no mesmo nível que os homens. Não bastassem os preconceitos, as proibições e os poucos espaços físicos reservados para elas—já que não podem, após a adolescência, confrontar-se com os meninos que possuem testosterona suficiente para atropelá-las.
Maria chuteira
Mas nem só nos gramados encontramos mulheres no futebol. No Brasil, uma verdadeira legião de meninas circula em torno dos jogadores de futebol. São jovens, bonitas, loiras em sua maioria e que os acompanham quando de suas incursões noturnas em busca de divertimento. Muitas delas se apresentam como modelos de publicações de moda e algumas o são realmente. Talvez em função do biótipo dos atletas haja esta atração que as impele a lhes procurar, mas muitas vezes existem outros objetivos não tão transparentes nesta atitude. Também freqüenta estádios, mas pouco conhece do jogo em si. Querem mesmo é ficar apreciando aquele desfilar de corpos sarados e suados, sonhando em um dia deles se aproximar. Muitas delas atingem o seu objetivo e em algumas ocasiões chegam a criar uma família com determinado
jogador. Outras, menos afortunadas, contentam-se em sair de vez em quando com o ídolo. Esta classe em crescimento se especializou em arrumar um ou mais casos com os craques. Às vezes, vão um pouco além. Uma gravidez inesperada ou um filho programado horas antes da concepção é um troféu que com uma boa pensão alimentar pode muitas vezes compensar o investimento. Afinal, para quem não gosta de futebol, amamentar deve ser um delírio. Nada contra. Cada um anda com as pernas que gostaria de possuir. Mas só quando não as têm. E como têm.
IMPORTÂNCIA DO NEGRO E RACISMO
Aristocracia e futebol
Quando o futebol foi apresentado oficialmente ao Brasil pelo inglês Charles Miller—que para cá trouxe bolas e as regras do esporte—no final do século XIX, o país acabara a pouco de promover o fim da escravatura. Sangravam no nosso cotidiano os longos anos de exploração dos negros provenientes da África em navios lotados e imundos como se fossem ratazanas da pior espécie. A nossa gente havia se habituado a tratá-los como seres menores e sem capacidades outras que não a sua força muscular utilizada nos duros trabalhos do campo. Porém, em seus momentos de descanso
da labuta, podiam-se ouvir em torno das senzalas (a morada dos escravos nos engenhos) os cânticos ecoarem todas as noites demonstrando que a cultura que com eles viera da África era chama viva de um povo que possuía sonhos e ideais. Depois de um longo período de grandes mobilizações pela causa negra chegou-se à abolição. Infelizmente a lei Áurea que devolveu oficialmente a liberdade aos negros jamais foi suficiente para que na prática esta realidade se estabelecesse—e ainda hoje continua não o sendo. Os antigos escravos, em sua maioria, não possuíam a formação necessária para competir em igualdade de condições com os demais segmentos da sociedade e passaram a ser explorados não mais como propriedade dos senhores da terra e sim como mão de obra tão barata que com o que recebiam em troca na nova situação era impossível de manter a mesma qualidade de vida da escravidão. Além do que, o número de trabalhadores em busca de ocupação se fez farto de hora para outra. Sem estudos e sem patrão que cuidasse dos seus interesses, eles tinham que aceitar todo tipo de esmolas— na forma de trabalho pesado—que lhes fossem oferecidas. O futebol no seu início de Brasil ocupou um espaço aristocrático como seu portador que vicejava pelas altas rodas da sociedade paulistana e no seio do clube que o abrigara: o São Paulo ((((Athletic)))) que até hoje mantém sua bela sede na capital paulista onde mais parece um oásis em uma das maiores metrópoles do planeta. Por esta razão havia neste período uma excessiva preocupação em se respeitar os responsáveis pela boa nova. Os termos utilizados para expressar as particularidades do jogo eram os mesmo da língua de origem: center-half, penalty, hands e off-side entre outros. Seus participantes eram também da elite assim como os expectadores. Era, sem dúvida, uma expressão esportiva do poder econômico. Os burgueses que acompanhavam os espetáculos se vestiam com rigor e as damas marcavam presença em número expressivo desfilando seus modelos de última moda como hoje se dá no pólo ou em páreos tradicionais de corridas a cavalo. O jogo de futebol não deixava de ser um acontecimento da sociedade mais abastada.
Esta forma de reproduzir de forma radical a terminologia inglesa provocou sérias reações de alguns intelectuais da época como o escritor Lima Barreto (ele próprio, mestiço) que chegou a criar uma organização contra o "foot-ball" acusando a importação do esporte de ser elitista e artificial. E realmente o era como pudemos entender acima. Ficava claro então que para o futebol pudesse se estabelecer definitivamente em nosso país, deveria se adequar e adaptar à cultura do país.
O negro e o jeito brasileiro de jogar
O que poucos podiam imaginar, nesta época, era que por sermos um país de economia limitada e com grande parte da população passando por necessidades básicas, pudéssemos adotar este esporte como forma de expressão cultural. E o foi exatamente por isso. O futebol é um esporte barato que exige apenas uma bola— que não necessariamente utiliza matéria prima de qualidade—e um espaço onde os participantes possam se movimentar. O futebol, por culpa desta facilidade e de ter como característica principal a livre capacidade de expressão, com o passar dos anos passou a se incorporar de tal maneira nos costumes nacionais que hoje até poderíamos imaginar que este é um jogo essencialmente brasileiro dado o sinergismo que nosso povo conseguiu produzir através das expressões corporais exigidas por este esporte. Um dos nossos grandes autores—Gilberto Freyre—já na primeira metade do século passado, atentava que a nossa sociedade era dona de uma modernidade alternativa devido às suas características híbridas onde predomina a miscigenação de raças. Ele, contrapondo-se aos que reagiam contra os negros e o futebol, apontava que a nossa singularidade enquanto povo vem da mestiçagem e isso seria motivo de orgulho, não de vergonha. Isto pode ser interpretado como uma afirmação corajosa de crença no
Brasil do mestiço e do negro, principalmente porque muitos escritores à época defendiam a superioridade do branco corroborando com as doutrinas racistas que nos levaram ao nazismo. Extremamente atento ao processo de massificação do futebol no Brasil e principalmente à integradora mistura de raças e classes sociais que ela promovia nos gramados, Gilberto Freyre não deixa de mencionar já em 1936 em sua obra Sobrados e Mucambos que a maior parte dos jogadores de futebol era quase toda mestiça. Nesta constatação de um fato que vinha ocorrendo nas últimas duas décadas, como veremos a seguir, ele sugere que a ascensão do mulato em um meio originalmente elitista implicou em uma radical mudança na expressão artística deste esporte, abrasileirando uma cultura rígida e europeizada. Neste aspecto ele define a brasilidade futebolística como "dionisíaca" baseada no individualismo, na emoção e na ação impulsiva em contraposição ao padrão cultural "apolíneo" dos europeus—muito mais formal, racional e ponderado. E dizia mais: "sente-se neste contraste o choque do mulatismo, ou melanismo brasileiro com o arianismo, ou albinismo, europeu. É claro que mulatismo e arianismo não como expressões étnicas, mas como expressões psicossociais condicionadas por influências de tempo e de espaço sociais". O estilo brasileiro de jogar, segundo Freyre, contrasta com o dos europeus por um conjunto de qualidades como surpresa, manha, astúcia, ligeireza e, ao mesmo tempo, de brilho e de espontaneidade individual. Em nossos passes, nossos pitus, nossos dribles e nossos floreios com a bola, há alguma coisa de dança e de capoeira (jogo ou luta ou dança afro-descendente) que arredonda e, às vezes adoça, o jogo inventado pelos ingleses (ou italianos, ou…) e por eles jogado de forma tão angulosa. O nosso futebol, com sua criatividade e alegria, é uma expressão de nossa formação social, democrática e rebelde a excessos de ordenação interna e externa, a excessos de uniformização, de geometrização, de estandardização; a totalitarismos que façam
desaparecer a variação individual ou espontaneidade pessoal. O futebol no Brasil se fez marcar por um gosto de flexão, de surpresa que lembra passos de dança que permite o improviso, a diversidade e a espontaneidade individual. Enquanto o futebol europeu é uma expressão de método científico e de esporte coletivo em que a ação pessoal resulta mecanizada e subordinada à do todo, no brasileiro a máxima é a expressão individual da pessoa que se destaca e brilha. Ele percebia então que a mistura sócio-racial que acontecia nos gramados era a razão da nacionalização deste esporte importado pelas elites o que o levou a ser aceito por todos os grupos sociais. E o negro realmente tem, a meu ver, papel preponderante não só na questão racial, mas também na forma brasileira—descontraída, irreverente, criativa, alegre e até, às vezes, irresponsável—de se jogar. É que existe uma clara relação entre a prática do futebol e a expressão corporal total e inusitada. Acredito que nas mais variadas expressões da arte o negro se porta como se a mesma dele fizesse parte do seu corpo. Como na dança, na musica, nos esportes e no futebol em particular. Quem nunca comparou gestos do futebol, com a dança de salão ou mesmo com a "malandragem carioca" e seu jeito todo peculiar de se movimentar em requebros indolentes e macios? Pois é, foi com estas características que modificamos o jeito inglês de jogar futebol. Colocamos nele muito de picardia e de criatividade, características natas dos brasileiros e em particular dos negros. E foi por esta porta de entrada que os negros invadiram os espetáculos de futebol. Trouxeram para o jogo um molejo diferente e alegre em que a liberdade e a música (jogar por música é uma expressão corrente em nosso futebol) se fizeram ouvir imediatamente, tornando-os partícipes de uma nova era do futebol brasileiro. Mas mesmo já sendo protagonistas importantes deste reino, eles tiveram que amargar tal discriminação que a maior parte das portas dos clubes esportivos do país se manteve fechadas para eles por muito tempo. Aqui é importante salientar que a meu ver a discriminação que
existe na Brasil é muito mais relacionada com o poder econômico do que com a cor da pele. Há muita dificuldade de convivência entre estes dois mundos tão antagônicos. O que já não acontece no esporte. A sociedade que geralmente se cria no esporte (entre os atletas) é absolutamente democrática, pois pessoas das mais variadas origens convivem de forma harmônica para que se consiga atingir o mesmo fim. Como disse anteriormente, meus primeiros contatos com a realidade social brasileira se deram através do futebol. Ainda menino já participava de times organizados e com isso convivia com indivíduos de todos os tipos: mais velhos, mais pobres, bem e mal nutridos, moradores de áreas valorizadas e habitantes de periferia. Por este motivo já na tenra idade pude começar a entender o mundo que me rodeava e que infelizmente pouco se modificou de lá para cá.
Primeira vitória
Mas, voltemos ao início do século passado. Diz-se que o primeiro clube carioca a permitir negros entre os seus jogadores foi o Vasco da Gama. Não sei se por ter ficado gravado na lembrança de muitos o título de 1923 com uma equipe formada por pobres, negros e mulatos ou se por uma decisão política de romper com esta forma de discriminação social. Os dois fatos talvez tenham se somado a ponto de chamar a atenção da sociedade. A descoberta de que os negros ou seus descendentes tinham habilidade para aquele tipo de atividade se confirmou com esta conquista vascaína. Isto provocou uma mudança nos hábitos das várias
organizações, mas a maioria delas demorou a tomar uma atitude mais progressista. Neste grupo, destacaria o Fluminense como o clube que mais relutou em discutir a questão racial. Este sim um clube aristocrata desde a sua fundação. Pois o Fluminense é conhecido jocosamente por time pó-de-arroz.
A lenda do pó-de-arroz.
Diz a lenda que um jogador chamado Carlos Alberto, que até então jogara no América, transferiu-se em 1914 para o Fluminense. Apesar de afro-descendente, caracterizado pelos torcedores como mulato, ele sendo filho de um conhecido fotógrafo da sociedade carioca podia freqüentar as chamadas boas rodas sociais e, além disso, era sócio do clube para o qual se transferira. No entanto, corre que no novo clube ele se sentia muito mais mulato do que no América e que por isso resolvera dissimular a sua origem utilizando o pó-de-arroz para embranquecer a sua pele. Com esta história, o clube das laranjeiras (famoso bairro do Rio de Janeiro) passou a ser chamado de esquadrão do pó-de-arroz. É difícil imaginar que alguém tenha tido a esperança de esconder a sua origem negra com este artifício, pois em poucos minutos tudo iria por terra, principalmente com o calor escaldante que queima o Rio quase todo o ano, mas é uma anedota interessante para entendermos as nuances étnicas que vigoravam na época e, em particular, no futebol. Um indivíduo vivendo em um ambiente que reage contra a sua presença—em função de alguma de suas características—jamais estará à vontade e indubitavelmente procurará encontrar uma fórmula para melhorar esta relação, mesmo que seja tentando esconder a razão do fato.
Os culpados das derrotas são sempre negros
A partir deste período, porém, a nação brasileira deixou de tomar decisões tão radicais como impedir um jogador de defender um determinado clube apenas por causa da cor da sua pele, e assumiu de vez a sua característica multirracial mesmo que a contragosto das elites. Assim, os negros puderam fazer parte da construção de um novo jeito de se jogar futebol. Que acabou por encantar o mundo a partir da participação na primeira Copa do Mundo no Uruguai em 1930 ainda que aquela seleção tenha sido castrada de alguns dos melhores jogadores por causa da rivalidade entre São Paulo e Rio de Janeiro que acabou com o boicote dos paulistas ao selecionado. Na Copa de 38, o pênalti cometido por Domingos da Guia— revidando uma suposta agressão de Piola quando o jogo estava paralisado-que colaborou para a desclassificação do Brasil na semifinal, foi discutido por ângulos bem diferentes. Aqueles que tentavam proteger o zagueiro e explicar o seu gesto diziam que houvera uma atitude racista por parte do italiano e que qualquer um que sentisse este preconceito reagiria da mesma forma. Outros, mais maldosos, apontavam o fato de ser negro a razão para tamanho destempero por despreparo nato da raça. Na verdade, havia exagero dos dois lados.
As Copas foram se sucedendo sem, no entanto, a seleção brasileira conseguir vencer. O episódio mais dramático aconteceu no mundial de 1950, realizado no Brasil. Havia um clima de título na véspera da partida final. Por tudo que o time realizara até ali e pela campanha do Uruguai—o adversário na decisão—tinha-se a certeza que a vitória ocorreria, mas no final, mesmo saindo na frente, quem acabou campeão foi o selecionado uruguaio. A reação do povo brasileiro foi impressionante: diz-se que logo após o encerramento do jogo, em torno do estádio, não se ouvia um único som dos lábios dos torcedores. A grande massa que afluíra para o chamado maior estádio do mundo—Maracanã, saiu mortificada em gigantesca procissão mortuária. Mas, é claro, havia de se encontrar culpados. E não é que o goleiro Barbosa e o lateral Bigode foram os apedrejados pela opinião pública. Pode parecer muita coincidência, mas eles eram os poucos negros da equipe ainda que ali encontrássemos muitos mulatos. Os dois carregaram este estigma o resto de suas vidas. Ainda hoje se diz por aqui que goleiro negro não é confiável. Como se as habilidades desta posição fossem incompatíveis com a raça do jogador.
O aparecimento do Rei e de Garrincha
No final dos anos cinqüenta, inicia-se o que podemos chamar de era Pelé—sem dúvida, o maior jogador de todos os tempos. E foi com a presença dele e do extraordinário ponta direita mestiço chamado Garrincha que o Brasil começou a ganhar títulos mundiais. E o conseguiu duas vezes consecutivas em 1958 e 1962. Foi nestes anos sessenta que passei a acompanhar mais de perto este enredo. Cansei de ver o grande time do Santos jogar e nunca percebi qualquer tipo de postura xenófoba por parte de quem quer
que seja. E olhem que aquela equipe era quase toda composta por negros e mulatos e que sua camisa branca como a neve lhes dava uma aura toda especial. Garrincha, porém, teve a sua carreira encurtada por vários motivos, inclusive médicos. Como as suas pernas tortas e a violência dos adversários acabaram por provocar inúmeras lesões nos seus joelhos—nem sempre adequadamente tratadas–, ele desenvolveu uma artrose articular precoce que limitava muito os seus movimentos. Abandonando e abandonado pelo futebol, acabou dependente do álcool e morreu com pouco mais de quarenta anos. Por culpa deste final melancólico e antecipado de carreira, Garrincha não pode participar da histórica campanha do tricampeonato onde Pelé e cia. demonstraram uma qualidade e um talento inconfundíveis. Aliás, o grande cineasta italiano Pier Paolo Pasolini em um artigo escrito e publicado no quotidiano "Il Giorno" pouco depois desta Copa, enaltecia o futebol brasileiro em relação ao europeu caracterizando-nos como autores do futebol poesia contra o futebol de prosa do velho mundo. É que a nossa forma de jogar é baseada—como em todo tipo de expressão cultural do nosso povo—na criatividade e na alegria de ação. E não tenho dúvidas que grande parte do que fomos naquele e em outros momentos marcantes e no que somos tem a mão, os pés e a visão de vida do negro brasileiro.
Dissimulações
Exceto por algumas particularidades já descritas, o racismo continuava a ser muito discreto e se evitava qualquer tipo de
manifestação mais agressiva. Pelo menos por aqui. Só algum tempo mais tarde, já adolescente, é que comecei a perceber algumas discretas atitudes que no fundo determinavam espaços diferentes para negros e brancos não conviverem, principalmente em alguns clubes esportivos que freqüentei na época. Um deles possuía a política de manter boas equipes amadoras defendendo a sua bandeira. No entanto, a estes atletas só era permitido utilizar as dependências destinadas a seus treinos e nada mais. Nada de usar a piscina do clube, os salões de baile e o restaurante social. Estes espaços eram exclusivamente para os sócios. Parecia-me que ali se estabelecia a imensa distancia entre os endinheirados e os pobres, o que infelizmente em nosso país é sinônimo de afro-descendente. Mais tarde, já jogando futebol, percebi que o mesmo acontecia em todos os clubes que passei. Para não serem vistos como declaradamente racistas, eles estendiam esta norma a todos os jogadores da equipe, ainda que aos de pele mais clara era dada possibilidade de alguma forma de utilização das dependências do clube social—de forma velada—como se houvesse certo relaxamento desta lei esdrúxula somente para este grupo de indivíduos. No período em que joguei no Corinthians de São Paulo (19791984), fizemos uma grande campanha para que os atletas se tornassem sócios do clube social e praticamente quase todos aquiesceram ao convite. Não que o clube tivesse qualquer regra contra algum tipo de raça, mas era uma maneira de integrar ainda mais a nossa relação com o clube que nos contratava. Isso determinou uma cumplicidade histórica que rendeu ótimos frutos. Além do que, evitou-se assim algum mal entendido quanto às regras de utilização dos equipamentos societários. Mesmo assim muitos episódios em que a discriminação se fazia presente não deixavam de ocorrer. Certa vez, quando de uma partida do campeonato brasileiro, por causa de uma suposta falha do nosso goleiro—Jairo—que provocou a derrota de nossa equipe, nós ouvimos o presidente do nosso clube emitir uma opinião
absolutamente racista de que aquele erro só acontecera por culpa dele ser negro. Esta afirmativa provocou uma verdadeira comoção no nosso grupo de trabalho que reagiu imediatamente àquele absurdo. Colocamo-nos frontalmente contra o dirigente e tornamos pública a nossa rejeição quanto à sua opinião. Para reforçar a nossa posição, já no jogo seguinte tive a oportunidade de expor ainda mais o meu sentimento: no meu primeiro gol na partida, fruto de um chute de longa distancia, atravessei todo o gramado para comemorar junto ao Jairo e fui acompanhado por todos os companheiros. Este desagravo foi como um tapa de luva de pelica na face de quem expressara a sua irracionalidade racial. E reforçou ainda mais os laços de amizade que uniam os jogadores.
Xenofobia crescente no velho mundo
Este bem estar na convivência dos integrantes de uma equipe de futebol—o que acho ser fundamental para as pretensões de qualquer estrutura coletiva-, que eu estava acostumado a perceber nas diversas experiências que tive no meio do futebol, infelizmente eu não pude aproveitar quando de minha passagem pelo futebol italiano. Por motivos que desconheço, encontrei um grupo de jogadores absolutamente dividido. O ambiente era tão ruim que se podia facilmente perceber que havia dois grupos definidos com interesses distintos. Entre eles a animosidade era flagrante: não se cumprimentavam, não se olhavam, não conversavam amistosamente e, pior de tudo, não possuíam espírito coletivo para jogar o que implicava em um dos grupos não dividir nem um
passe, nem um lançamento e muito menos qualquer estímulo para o companheiro que neste caso mais parecia um inimigo mortal. Como é que um grupo de atletas que não formam uma equipe pode pretender que se alcance o sucesso esperado por todos os que estavam a nossa volta? Foi nesta situação que cheguei a Florença. Não bastasse ser um estrangeiro a disputar o mercado de trabalho com os nativos em um tempo em que isso era uma raridade, pois apenas dois não italianos podiam fazer parte da equipe, ainda por cima encontro uma realidade disforme e beligerante. Caindo de para quedas no meio deste conflito, que mais parecia obra de fundamentalistas religiosos, senti-me perdido. Ainda tentei promover um acerto de contas em que tudo pudesse ser esclarecido e pudesse, quem sabe, transformar aquela micro-sociedade em algo mais positivista e solidário. Infelizmente não foi possível porque os únicos que poderiam e deveriam ter agido em prol do clube—seus dirigentes—se recusaram a colocar a mão naquele vespeiro perigoso. Ali também sofri com o boicote de um dos meus colegas que jamais em tempo algum me passou uma única bola nos mais de doze meses que por lá passei. Neste caso, eu me senti discriminado e agredido. Um típico caso de racismo não pela cor—pois, que eu saiba, este indivíduo jamais soube que eu sou descendente de negros, mas deve ter desconfiado ou talvez, de antemão, já possuía certa tendência a rejeitar qualquer tipo de convivência com pessoas que tenham nascido abaixo do equador. Africano ou mediterrâneo, como em geral se diz no norte da Itália quando se quer depreciar alguém, era o que eu representava naquele momento. Talvez eu estivesse ali convivendo com uma demonstração—consciente ou inconsciente, não importa—de uma das formas de expressão do comportamento e do caráter fascista. Até então, desconhecido para mim. Mas essa, infelizmente, não foi a única descoberta que fiz em terras européias na questão do racismo. Meu amigo e companheiro de seleção brasileira Junior era jogador do time do Torino.
Quando nos enfrentamos, surpreendi-me ao ver uma imensa faixa nas arquibancadas rejeitando a sua presença no time por causa da sua cor de pele—e nem negro ele é. O fato de ser apenas mulato claro já bastava para as manifestações inconseqüentes de um grupo de torcedores. Isso porque ele era o melhor jogador do time. Imagino o que aconteceria, caso não o fosse. Talvez em função da proximidade com a segunda grande guerra em que este tipo de procedimento foi amplamente contestado pela sociedade contemporânea, demonstrações de racismo explícito eram relativamente raras e quase tímidas nos campos de futebol, mas não devemos esquecer que ele se manifestava de forma clara e repetitiva e que em nenhum momento foi reprimido pelos que comandam o futebol mundial. Isso sempre foi tratado como algo menor, descartável, em que preocupações não deveriam existir, pois se pensava que eram atitudes isoladas de determinados grupos. Mais ou menos como se avaliaram as posturas de extrema-direita nas diversas sociedades européias naquele instante. Como foram tratadas com desdém pelas democracias, puderam criar raízes ainda mais profundas, crescer e quando não chegaram ao poder, dele se aproximaram perigosamente. O crescimento deste tipo de atitude contra os imigrantes, a meu ver, tem relação direta com o aumento da pobreza nos países africanos nesta época de economia globalizada. Para tentar solucionar seus problemas muitos dos antigos colonizados de deslocaram para a Europa rica em busca de trabalho e subsistência.
OMISSÃO POLÍTICA E MEGA-EXPOSIÇÃO
Anos 60
Nos anos sessenta, encontrávamo-nos em um estado primitivo quanto às comunicações. A televisão, que chegara ao Brasil na década anterior, ainda possuía um alcance limitado dentro de nossas fronteiras. Para termos uma idéia, só em 1965 é que é fundada a TV Globo que viria anos depois a ser praticamente o maior poder deste país—a rede formada por suas afiliadas atinge praticamente todo o território nacional. A Copa do mundo de 1966 na Inglaterra foi por mim acompanhada através de um velho radio de pilha que um dos meus amigos levava para uma região da cidade que possuía grandes ladeiras onde ou empinávamos papagaios ou enfrentávamos competições de carrinho de rolimã que de certa forma faziam nos sentir como pilotos de fórmula um quando esta ainda nem era por nós conhecida. Ficávamos ali horas a esperar o momento das partidas. Sofremos muito com a derrota contra a Hungria no segundo jogo, mas a ausência de quase todos os titulares serviu como esperança para o jogo decisivo contra o Portugal de Eusébio. Mais uma vez ela caiu por terra quando acompanhamos os narradores descrevendo a incrível falha do goleiro Manga que jogou por terra todas as possibilidades do tri-campeonato. Os torneios nacionais de futebol praticamente inexistiam por aqui. Apenas um campeonato de seleções estaduais tentava preencher esta lacuna. Tudo isso por causa das gigantescas distancias entre as diferentes regiões que formam este país continental. Como a aviação também era pouco desenvolvida, havia uma clara dificuldade de intercambio. Com isso, os torneios limitados aos estados que formam a federação eram os que chamavam a atenção do público
consumidor deste tipo de espetáculo. Pouco se conhecia do futebol jogado em outros estados e dos jogadores destes a não ser quando eram chamados a representar estas unidades políticas. O país também passava por fortes turbulências institucionais que culminaram com o golpe de Estado ocorrido em março de 1964. Com isso, as liberdades individuais foram tolhidas. Mas o Brasil não foi o único a sofrer com este tipo de ruptura: nos anos sessenta aconteceram inúmeras intervenções estrangeiras e mais de cinqüenta golpes de Estado. Quando do golpe militar, eu ainda era uma criança, mas muitos dos símbolos da época já interferiam em meu cotidiano—os Beatles principalmente. A postura, o modo de agir, de se vestir e o comprimento dos seus cabelos provocaram mudanças radicais na cultura dos nossos adolescentes que assim acompanharam o estado de espírito e de rebeldia nascido nos primórdios dos anos sessenta e que teria seu ápice no ano mágico de 1968. As manifestações em maio deste ano em Paris foram para mim um marco. Sob a batuta de Daniel Cohn Bendit, os estudantes saíram às ruas para protestar contra aquilo que para eles era uma afronta aos seus direitos.
Sartre no Brasil Existencialismo e futebol
Não podemos nos esquecer que muito desta transformação veio da influência do existencialismo cujo maior interprete foi o filósofo Jean Paul Sartre. Sartre que inclusive esteve ao lado dos estudantes
nas barricadas de maio de 1968. Além de grande pensador, Sartre disseminou as suas idéias em várias frentes: jornalismo político, crítico de arte, antropologia histórica, romance, novelas, autobiografia, correspondências e roteiros de teatro e cinema. Como podemos ver, o homem era um tremendo produtor de quase tudo que se possa imaginar. Sartre adquiriu extraordinária popularidade no após-guerra quando a Europa tentava se reerguer das barbáries do nazi-fascismo. A experiência traumática da guerra desencadeou um ambiente de desanimo e desespero principalmente na juventude, absolutamente descrente na capacidade do homem de encontrar soluções para as contradições no corpo social. O existencialismo se desenvolveu rapidamente na medida em que suas teses esclareciam aquele momento dramático. Como dissemos acima, muito do que somos hoje advêm deste período, pois o existencialismo—tanto quanto doutrina filosófica—passou a ser visto como um estilo de vida, uma forma de comportamento muito combatida pela burguesia da época. Esta descrevia os existencialistas como amorais, pois estes pregavam uma mudança de costumes onde a forma de se vestir, comportar-se e pensar era absolutamente diversa da que vicejava então. O engajamento político também se tornou um ícone do movimento. Sartre afirmava que o engajamento era uma obrigação moral para aquele que, recusando o conforto da atitude contemplativa, atrai as conseqüências éticas e políticas do seu ser. Seria particularmente o caso de intelectuais e escritores por terem o poder de revelar o mundo. E assim ele fez: participou ativamente de várias manifestações contras as intervenções políticas em outros povos como a invasão da Hungria pela extinta União Soviética que o fez romper com o comunismo do qual se aproximara anos antes, combateu a guerra do Vietnã, defendeu a independência dos paises africanos que ainda eram colônias dos europeus, renunciou ao premio Nobel, etc. E em uma de suas viagens ao continente americano ele passou pelo Brasil a convite do escritor Jorge Amado. Foi em 1960. A sua estada no país provocou um verdadeiro frisson no meio intelectual e
estudantil. Realizou conferencias e participou de debates que atraíram uma legião de fãs—um deles, na televisão, foi tão interessante que durou três longas horas. Ao final, ele achou estranho que uma emissora comercial mantivesse por tanto tempo no ar—perdendo dinheiro já que outras atrações haviam sido canceladas—um programa em que se discutiu basicamente a revolução cubana e a guerra pela independência da Argélia. Visitou várias cidades do país e em uma delas—Araraquara, no interior de São Paulo, onde proferiu uma palestra para os estudantes de filosofia—ocorreu um fato esclarecedor sobre a cultura do nosso país: depois de visitar o prefeito da cidade, ele, Simone de Bouvoir e seus cicerones—Fernando Henrique Cardoso, futuro presidente do Brasil de 1994 a 2002, inclusive — estavam se dirigindo para o bar do Olívio (ou do Pernambuco, como era mais conhecido), ali do lado, para possivelmente tomar—de vez em quando, Sartre gostava de saborear um bom trago apesar dos reclamos da mulher—ou comer alguma coisa, quando foram bloqueados por uma verdadeira procissão de centenas de pessoas que passava à frente do prédio da prefeitura. Assustados com aquela multidão, entreolharam-se com cumplicidade e—quase por intuição—os que estavam mais á frente do grupo cerraram fileiras em torno do filosofo para protegê-lo de eventual assedio. Afinal, mesmo com toda a repercussão da passagem de Sartre por aqui, eles jamais imaginaram que tanta gente pudesse estar interessada em conhecê-lo. Principalmente figuras populares como as que ali estavam presentes. Mas ninguém deu a mínima bola para eles. As pessoas continuavam a sua caminhada sem nem mesmo dirigir olhares naquela direção. Pareciam estar em êxtase por outro motivo. Um dos acompanhantes de Sartre não resistiu e se aproximou da multidão. Abordou um dos transeuntes e lhe perguntou: você não quer cumprimentar Sartre? O popular nem pestanejou e respondeu com outra pergunta: ele joga em que posição? Foi uma gargalhada só—caíra a ficha. Só naquele momento é que todos da comitiva do filosofo francês se deram conta que aquele povo todo estava indo para o estádio. Era dia de jogo do Santos e
Pelé iria jogar. E o povão só queria saber do craque: o existencialista do futebol.
Paris 68 e quase total omissão do futebol
Mas, voltando a falar de Daniel Cohn Bendit, chamado Le Rouge, ele foi um individuo que talvez tenha representado para minha formação muito mais do que tantos outros. Diria até que junto a Lennon e Guevara, ele tenha me impressionado tanto que provocou uma guinada radical na minha forma de ser e ver o mundo. Eu conheci Daniel em meados dos anos oitenta. Ele se encontrava trabalhando para um jornal alemão e veio me entrevistar. Lembrome que um dos temas discutidos foi a "democracia corintiana", movimento que realizamos na minha equipe—Corinthians—e que nos permitiu criar uma nova ordem nas relações entre patrão e empregados conquistando o direito de decisão nas questões coletivas e assumindo uma postura mais responsável mesmo que com mais
liberdade. Não havia como não criar um paralelo entre o que ele vivera na Universidade parisiense e o que estávamos construindo em São Paulo. Afinal, foram dois momentos revolucionários que profundas transformações provocaram. Uma mais global e proporcional a outras tantas ações que modificaram radicalmente o mundo que viria após 1968. Outra, mais regional, por culpa do absoluto conformismo que reina no mundo do futebol em que quase ninguém questiona praticamente nada daquilo que é imposto aos jogadores. E este tipo de comportamento vem desde os primórdios. Pouco se fez ouvir contra o sistema mesmo nos anos sessenta em que vivíamos uma situação de guerra civil em busca da derrocada do regime militar que nos sufocava.
Os jogadores de futebol no Brasil na década de sessenta viviam em uma estrutura quase amadora. Este esporte apesar de já ser o mais popular na maior parte dos povos do planeta, neste período ainda não possuía uma estrutura profissional que pudesse ser vista como um grande negócio gerador de riquezas em comparação a outros segmentos da sociedade. Principalmente por aqui. Mesmo assim não cansávamos de produzir matéria prima de primeiríssima qualidade que entupiam nossos gramados de criatividade e beleza levando multidões aos nossos estádios. Ora, como é possível que tendo em mãos toda uma cadeia produtiva de uma obra de arte assim popular não tenhamos criado uma estrutura profissional que pudesse explorá-la de forma que gerasse recursos e não se degradasse? Afinal, o mundo já conhecia há tempos o potencial dos nossos jogadores—muitos deles saindo precocemente do país para defender equipes de além-mar desde os primórdios deste esporte–, e o público aficionado só fazia crescer principalmente depois do primeiro título mundial 1958. Este desperdício em todos os sentidos acarretou perdas irreparáveis não só para a estrutura como principalmente para os artistas da bola. Quantos dos nossos verdadeiros gênios, que passearam suas incríveis capacidades nos anos 50 e 60, puderam ter uma velhice
condizente com tudo o que produziram para o futebol? Poucos, para não dizer pouquíssimos—um termo que representa melhor a infeliz realidade. Alguns inclusive sendo atores principais de dramas existenciais absurdamente tristes. Pensando cá com meus botões percebo que quase nunca, com raras exceções, a humanidade conseguiu tratar com os devidos cuidados aqueles que vendem sonhos. E isto acabou provocando, em determinadas épocas, o surgimento de movimentos coletivos— verdadeiras revoluções— contra este estado de coisas. Foi o que ocorreu durante o romantismo ou—mais próximo ainda—com a forma de pensar, agir e entender o mundo dos hippies—movimento ocorrido exatamente nesta mesma época. Aqui entra uma questão crucial: por que os artistas e personalidades do futebol, que viviam em regimes pouco adequados aos seus interesses, não tomaram atitudes de rebeldia contra os seus senhores em ocasião tão propícia? Ali, Os jovens estavam se colocando definitivamente contra o sistema—basta lembrarmos os grandes shows de rock e a filosofia da paz e do amor além, é claro, dos conflitos de maio de 68 em Paris. Havia todo um clima, uma cumplicidade com os segmentos populares mais excluídos—no mais das vezes e ao menos no início dos protestos—e uma energia que favorecia uma tomada de posição clara e definitiva. Era um período de grandes mudanças nas relações humanas e no corpo da própria estrutura da sociedade. E o que vemos no futebol? Alguém percebe, naquele período, alguma proximidade deste meio com o que acontecia no mundo? Ou muito me engano ou quase toda uma geração nascida e criada nesta estrutura passou ao largo das grandes transformações da década de 60. O pouco que eles podiam perceber baseava-se na constatação de que quando iam a Berlim tinha que necessariamente aceitar que não poderiam passar para o outro lado do muro construído no início daquela década ou que as mulheres não mais podiam ser tratadas com pouco caso e já não dividiam com os machos o controle da sua sexualidade e da maternidade. Muito pouco! Muito pouco principalmente para eles mesmos que por não possuir
uma noção clara da sua importância no contexto social se tornaram pouco valorizados e expostos a regimes tacanhas e reacionários Aliás, nesta época estávamos passando por um período negro de nossa história. O regime militar que se instalara em 1964 tomou para si o domínio das estruturas sociais e agrediu e transgrediu toda forma de direito do cidadão. Um dos que sofreram por enfrentar a vontade da ditadura—e por isso foi afastado do comando da seleção nacional de futebol por sua postura independente—foi João Saldanha. Um dos poucos deste meio que se fez ouvir. Imaginem se no momento da sua derrubada seus comandados tivessem reagido e afrontado a decisão que veio de cima? Ou mesmo se um único atleta como Pelé houvesse se manifestado de forma clara contra todos os desmandos que atacavam a nossa juventude. Estes ídolos populares não poderiam argumentar desconhecimento pois ainda que nos porões da ditadura muita coisa tenha acontecido sem o conhecimento da população por culpa da restrição das liberdades de imprensa, muitos episódios não poderiam ter sido desvalorizados como, por exemplo, a invasão do teatro—onde era encenada a peça Roda Viva de Chico Buarque de Holanda—por parte do chamado CCC (comando de caça aos comunistas), uma organização de extrema direita, que espancou sem distinção atores, atrizes e funcionários do teatro, ou as mais de 1200 prisões ocorridas em Ibiúna (SP) no congresso número 30 da União Nacional dos Estudantes (UNE). Possivelmente uma posição corajosa e pública colocaria em cheque todo o regime pois provocaria uma intensa discussão sobre a nossa realidade política através da linguagem do futebol que é muito mais acessível à maioria do nosso povo. Pena que não tenha acontecido assim e talvez tivéssemos evitado um grande número de desaparecidos. Nossos jogadores eram românticos com a bola no pé, mas na conduta, absolutamente omissos.
Linguagem e exposição á mídia
E foi esta "linguagem do futebol" que permitiu à democracia corintiana assumir uma posição de destaque na sociedade brasileira uns dez anos depois quando dos movimentos que culminaram com a redemocratização do país. O grupo de trabalho em um clube de futebol que inclui os atletas, os profissionais que dão suporte a eles como médicos, nutricionistas, fisioterapeutas, massagistas, psicólogos, técnicos e auxiliares, preparadores físicos e alguns outros como enfermeiros e roupeiros, além dos dirigentes esportivos, formam uma micro-sociedade acompanhada cotidianamente por uma multidão de aficionados quase como se fosse um "reality show." Este grupo social tem o privilégio de se comunicar intensamente com o seu público o que acarreta uma série de situações muito peculiares, mas nem sempre muito confortáveis como vimos no assédio a Ronaldo—o fenômeno—e sua ex- mulher Daniela Cicarelli quando do seu casamento relâmpago.
Como, aliás, acompanhando bem a distancia, e apenas por curiosidade, pudemos perceber na repercussão da festa que eles dois ofereceram para os parentes e amigos na celebração da sua união. Analisando a forma como foi tratada a festividade, principalmente pela mídia, vemos uma dose exagerada de alguns sentimentos
humanos, digamos, pouco agradáveis. É claro que muito pouca gente (se é que existe!) possui a capacidade de ser razoavelmente crítico consigo mesmo para aceitar que esteja sentindo inveja ou ciúme quando se manifesta de forma tão agressiva. Mas que boa parte daqueles que passaram semanas a espezinhar a dupla estava sentindo algo parecido, não tenho dúvidas. Os dois são jovens, conhecidos e no caso de Ronaldo, possuidor de uma confortável situação financeira. Eles também são figuras freqüentes na mesma mídia que, por estes desígnios que jamais podemos explicar, acabaram se encontrando e se apaixonando. E esta, a paixão, é o X da questão. Todo o resto implica em algo material e de importância relativa dependendo do caráter do individuo e/ou da sociedade em que ele vive. Mas a paixão implica em felicidade. Não há nada que incomode tanto quanto esta tal felicidade. E, pior, ela não se encontra exposta em qualquer prateleira de bodega de esquina para ser adquirida. É necessária boa dose de coragem e desprendimento para conquistá-la. Não se pode ter medo de nada—muito menos da opinião de quem quer que seja. Opiniões que o mais das vezes portam um ranço negativista, implicante e conservador. A paixão dos dois foi passageira, o casamento idem, mas este tipo de comportamento é endêmico neste meio.
Paixão massacrada
E olhem que estamos em pleno século XXI. Este que nasceu com práticas sociais muito diferentes de cem anos antes, fruto de conquistas da juventude principalmente nas últimas décadas do seu antecessor. Imaginem algo semelhante há mais de quarenta anos atrás. Seria com certeza muito mais dramático e sofrido. Mas, por que lembrar de tanto tempo atrás? Desculpem pela ousadia, mas é que eu não pude deixar de comparar, em parte, com a história de Garrincha e Elza Soares. Um dos dois maiores jogadores de futebol do país e que havia sido o grande (quase único) responsável pela conquista do bi-campeonato mundial de futebol para o Brasil em 1962 e uma das cantoras mais populares e, por que não dizer, cobiçada pelos garanhões cariocas da época e, além de tudo, negra— o que só viria a agravar a reação da alta sociedade, branca e hipócrita–, apaixonaram-se. Como não podiam esconder este sentimento indefinidamente por serem figuras mais que populares, passaram a ser perseguidos. Mais ou menos como Ronaldo e Daniela, mas com muito mais intensidade. Eu pude perceber o quanto Elza sofreu com tudo aquilo e quanto sentimento ainda guarda dentro de si daquela paixão vivida de maneira tão arrebatadora, quando tive, por uma feliz coincidência, o privilégio de assistir a alguns anos atrás um espetáculo dela. Tinha ido, a convite de um amigo, a uma exposição no Sesc Pompéia. Só que este meu parceiro demorou a chegar e eu fiquei um bom tempo por ali perambulando pela rua que atravessa o complexo aguardando que sua majestade aparecesse. Neste ínterim, acabei fazendo diversas amizades novas que acabaram por me valer, no final de semana seguinte, um belo de um churrasco. Neste contato é que fiquei sabendo que havia um show da Elza marcado para um outro espaço ali dentro. Não tive dúvidas e fui correndo garantir o meu lugar na platéia. O que vi me emocionou. Enquanto ela cantava, tinha ao fundo, no cenário, uma foto de Mané Garrincha. Imediatamente, transportei-me para a saga que eles viveram e não pude conter as lágrimas. Foi me dando um nó na garganta, um
arrepio por todo o corpo, uma vontade de transformar todas as besteiras que foram feitas contra eles, que acabei no choro. Enquanto eu me acabava de tristeza, ela aparentemente estava conseguindo se manter razoavelmente tranqüila até que começou a cantar "Meu Guri" de Chico Buarque. Aí não deu mais: Elza sentouse no palco, virou-se para trás e admirando o seu "neném", chorou; mal conseguiu terminar o número. Só quem já viveu algo parecido é que pode ter idéia do que representa—quem dera que todos os humanos pudessem provar deste néctar ao menos uma vez na vida. Os dois (Elza e Garrincha) foram massacrados por muito tempo, até a exaustão, porque se apaixonaram, porque eram felizes. Os tempos são outros, mas pelo menos uma frase permanece a mesma: "ele perdeu o foco na bola". Como se o que eles viveram fosse um crime.
INVASÕES BÁRBARAS
Popularidade e business
Pois é, esta absurda exposição é fruto da popularidade que este esporte possui. Diria até que vem da impressionante característica de
nem sempre premiar o melhor time. Na história das copas poderíamos citar várias seleções que encantaram o mundo, mas que não chegaram a ser campeãs mundiais como o Brasil de 50, a Hungria de 54 d e posteriormente a Holanda de 74, novamente o Brasil de 82 e citaria também a Argentina de 94. Neste tipo de competição a possibilidade de acontecimentos surpreendentes se torna mais factível, pois a maior parte de seus jogos são eliminatórios. É uma grande feira de futebol onde a cada quatro anos os melhores vão expor os seus produtos para quem sabe vendê-los no exterior. Infelizmente no caso do Brasil, historicamente, sempre tivemos a filosofia de vender os artistas em vez das suas obras. Mais ou menos como se tivéssemos sob contrato um Leonardo da Vinci ou um Michelangelo e abrir mão dos seus talentos em vez de vender uma Gioconda ou uma Pietá. É claro que a capacidade de gerar riquezas, principalmente nas décadas passadas, sempre foi muito maior nos clubes europeus, porém se tivéssemos um pouco mais de capacidade administrativa, poderíamos manter a maioria dos nossos melhores jogadores. Como Pelé e Garrincha, por exemplo, que permaneceram em seus clubes praticamente a carreira inteira. Nunca nos faltou público consumidor para isto. E o número de apaixonados era tão grande e sempre presente que gigantescos estádios foram construídos na década de setenta. Até então, possuíamos apenas o Maracanã no Rio de Janeiro e o Pacaembu em São Paulo para receber verdadeiras multidões. Os demais estádios eram de menor porte e com construções antigas o que provocava muitos conflitos quando das partidas mais importantes. Foi nesta época que o negócio futebol começou a crescer de forma avassaladora. Através de uma política global, a Federação Internacional conseguiu atrair para sua fileiras muitas organizações nacionais que ainda se mantinham distantes da bandeira oficial. Mais tarde, inclusive, aumentou-se o número de participantes do mundial exatamente para contemplar este crescimento do interesse pelo esporte. Os patrocinadores, que antes se limitavam a emprestar seus nomes e sua história a uns poucos torneios, começaram a disputar espaços em torno do futebol reconhecendo o imenso
potencial de comunicação que este esporte possui. E isto criou até transformações culturais inimagináveis em outros segmentos. Como o que aconteceu no Japão a partir deste período.
Saudade insuportável
Estive pela primeira vez no Japão no início dos anos oitenta. Jogava no Corinthians e realizaríamos três partidas contra a seleção olímpica japonesa. Havia um sentimento de estranheza no ar: jamais imaginei que pudesse haver interesse do público daquele país pelo futebol. Até porque sabia que este esporte não fazia parte da cultura daquele povo que enchia os ginásios para assistir às competições de sumo e judô, mas não de futebol. Foi nesta viagem que ocorreu um dos fatos marcantes da nossa experiência na democracia corintiana. É que um dos nossos companheiros se apaixonara. Paixão, bendita paixão. Este sentimento é o mais vigoroso e arrebatador de todos os que podemos vivenciar. Quando estamos apaixonados todo o resto é secundário. A única força que necessitamos é a presença da razão de nossa paixão—física de preferência. A sua imagem não nos sai do pensamento e todas as ações estão voltadas para ela. Já me apaixonei dezenas de vezes. Talvez esta seja a características mais marcante da minha existência.
Sem a paixão me parece que a vida tem um sentido menor, tornando-se mais cinzenta e triste, e que os dias se tornam mais longos e cansativos. Não há brilho, não há cores. Um verdadeiro caos. Já fiz todas as loucuras possíveis por uma paixão e acompanhei outras semelhantes. Quando o Casagrande, o nosso colega em questão, apaixonou-se pela sua futura mulher, transformou-se. Ele, que pouco estava preocupado com qualquer coisa que seja até então, apegou-se de tal forma a este sentimento que quase joga fora a sua carreira esportiva. Por paixão, tudo vale! Pois foi poucos dias depois de conhecê-la que tivemos que voar para o Japão. Notamos que ele estava muito diferente do que sempre foi. Em vez de expansivo e alegre, estava calado e triste. Encostou-se na sua poltrona e quase nada falou durante as quase 24 horas de viagem. Quando lá chegamos, ele provocou talvez a primeira reunião importante da democracia corintiana—para discutir uma possível volta antecipada para casa para poder revê-la imediatamente. Alguns argumentaram que aquele gesto poderia atrapalhar os seus planos profissionais e que deveria tentar suportar a ausência da melhor forma possível. Eu, como havia passado por aquilo algumas vezes, fiquei do seu lado sabedor da dor que estava sentindo. Foi quando o Edu (Eduardo Amorim) pediu a palavra e expôs que em nossa profissão tínhamos que passar por muitas coisas difíceis pois ficávamos muito tempo longe das pessoas que gostávamos e que nem ao enterro de seu pai ele havia tido a oportunidade de comparecer devido à distância de onde se encontrava naquele dia. Aquela revelação nos derrubou e o Casão se conformou em carregar a sua saudade por quinze longos dias. Eu, certa vez, no auge deste sentimento, fiz pior. Em determinada ocasião, cheguei a tomar a ponte aérea, já que ela morava no Rio de Janeiro e eu em São Paulo, quatro vezes no mesmo dia. Tudo isso respeitando os meus compromissos profissionais. Acordei de madrugada para tomar o café da manhã com ela. Logo após, voei para São Paulo para o treinamento da manhã. Ao meio dia, voei de volta para almoçar com ela. No começo da tarde, nova travessia para
a capital paulista. Algumas horas depois, retornei para jantar junto da amada. Quando desembarquei em Congonhas (aeroporto de São Paulo)—naquela que seria a última viagem–, lá pelas 10 da noite, e ainda na sala de desembarque, bateu uma saudade no meu peito— uma vontade de ficar ao lado de quem amava—daquelas impossíveis de relevar e senti a necessidade, o desejo, a loucura de dormir com ela. E, quase sem racionalizar, acabei voltando para os braços queridos. Aquele último vôo representava o êxtase, a comunhão de sentidos, a felicidade plena. Nada, nem mesmo a vivência física do sentimento, é maior que aquilo que rumina na alma. Nem o sexo é fundamental. É que quando estamos apaixonados, parece que quem é foco do sentimento somos nós mesmos. Vemos-nos com muito mais carinho e respeito e acreditamos piamente que estamos acima de qualquer eventual restrição que o cotidiano nos coloque à frente. A paixão nos torna fortes como jamais supúnhamos. E este choque nos potencializa em tudo que fazemos. No trabalho também. Principalmente para quem pratica algum esporte ou exerce um ofício ligado a qualquer tipo de arte. Com as emoções à flor da pele podemos expressar com mais intensidade nosso talento e o resultado é excepcional. Só existe um problema: a dependência é plena. Temos que a qualquer instante sentir que o nosso sentimento está sendo correspondido na mesma intensidade e desejo. Um briga boba que seja pode nos destruir, nos jogar no chão. E aí, não conseguimos fazer mais nada enquanto não resgatamos a paixão ameaçada. Como se a felicidade nos escapasse entre os dedos.
O Japão adere ao futebol
Mas, voltemos ao nosso giro pelo Japão. Naquela ocasião, pude perceber que algo de diferente estava por acontecer. Todas as
partidas que disputamos foram realizadas à tarde mesmo sendo distantes do final da semana e as crianças eram a quase totalidade dos espectadores. Aquilo me impressionou. Nas visitas que havia feito a algumas escolas públicas naqueles dias, eu não vira nenhum campo de futebol. Os espaços destinados à prática esportiva tinham invariavelmente aquele Y nos dois lados do campo o que determinava que Rúgbi ou futebol americano eram as preferências nacionais. Por que levar uma equipe de futebol para uma excursão por aquelas bandas? E ainda mais no inverno, pois chegamos a jogar nevando. A resposta para esta questão que explicasse aquele tipo de investimento—no meu modo de ver—só podia ser resultante de determinado processo ideológico. A minha hipótese é fruto de como vejo a nação japonesa; visão esta proveniente dos meus poucos, mas intensos, contatos com o oriente. Quem tem noção do estado em que o país saiu da segunda grande guerra deve se sentir surpreso—como eu—com a grande recuperação acontecida nas décadas seguintes. Um dos pilares que possibilitaram o pleno crescimento da economia japonesa e, por conseqüência, da auto-estima e das condições de vida no arquipélago foi o modelo industrial implantado ali. Modelo que estimulou a criação de células de produção coletiva que pouco se modificaram no curso dos anos. É muito difícil encontrar algum operário japonês que tenha mudado de emprego ou de empresa durante os seus anos de trabalho. Pois foi esta célula coletiva que empurrou a economia japonesa a se tornar uma das mais poderosas do planeta na segunda metade do século passado. Todo o sentido de vida era baseado no coletivo. No próprio lazer, após as muitas horas de trabalho, podia-se ver que os mesmos indivíduos permaneciam juntos nos bares e nos karaokê da vida. Porém, apesar de sermos uma espécie basicamente social, temos sempre uma grande porção individualista que nos estimula a diferenciar da maioria. Principalmente no capitalismo. E com a nova realidade da economia japonesa, as pessoas passaram a desenvolver valores em que o personalismo teria papel importante em suas existências—extremamente natural, ainda que contrastante com a
tradição da cultura oriental. Para enfrentar, digamos, este monstro que poderia destruir todo um modelo que havia tido resultados excepcionais, eles deveriam desenvolver estratégias que valorizassem ainda mais os aspectos coletivos da convivência humana. E no esporte, acredito, o futebol caiu como uma luva. Não há esporte mais democrático e coletivo que o futebol. Primeiro que qualquer um pode praticar este esporte. Baixos, altos, gordos, magros, velozes ou lentos—não importa o tipo físico–, todos são bem vindos ao futebol. Quem me viu jogar e a Maradona também, sabe muito bem do que estou falando. Outra característica fundamental deste jogo é que não existe um jogador mais importante que outro. Podemos ter jogadores de mais qualidade ou destreza, mas este nunca é o único responsável pela atuação da equipe. Ao contrário do basquete, por exemplo, em que o armador é quem define até em que nível o time jogará. E assim, os outros esportes, ditos coletivos, mais difundidos no mundo também possuem um jogador com esta responsabilidade: no beisebol temos o lançador, no futebol americano também, no voleibol o levantador, etc. E foi por estas qualidades que eu acredito que os japoneses tenham investido tanto no futebol—lá, nos longínquos anos oitenta. E os resultados já se fizeram sentir uns dez anos após quando se instalou a J-league. Foi nesta época que voltei ao Japão mais uma vez e pude constatar a grande transformação. Além de uma liga forte, vi que todos os campos escolares que antes tinham o Y como traves agora possuíam definitivamente as balizas de futebol. Nesta viagem aconteceu algo inesquecível e relativo à minha exagerada intuição que não sei bem de onde vem.
Tóquio na madrugada
Cheguei até lá por ter sido convidado para uma série de palestras sobre futebol, medicina e suas correlações. Além disso, o pacote incluía trabalhos de campo com garotos e adolescentes. Metade da estadia na região de Tóquio e a outra parte nos arredores de Osaka. Apesar de ter uma idéia, não sabia que se trabalhava tanto por aquelas bandas. Toda manhã, em torno de sete da matina, já estava a minha espera um verdadeiro séqüito. Nem sempre conseguia sorver o café como deveria. Imediatamente nos dirigíamos para algum centro esportivo onde nos aguardavam centenas de crianças devidamente vestidas e agasalhadas. Fazia muito frio também. Almoço, nem pensar. Era tempo corrido até o anoitecer. Chutes, cruzamentos, toque de bola, passes, cabeceios, noções táticas e tudo o mais durante quase 12 horas. E criança, vocês sabem, parece que não cansa nunca. Findo este período, saíamos velozmente para algum auditório nas imediações para proferir e discutir com os adultos os temas que lhes interessavam. Mais duas horas aproximadamente. Retornávamos ao hotel já bastante tarde e cansadíssimos. Isto não impedia a tentação de conhecer a noite daquelas grandes cidades. E lá ia todo o dia para o Ropponggi (acho que é assim que se escreve), bairro de intensa vida noturna de Tóquio ou seu congênere em Osaka. Encontramos inúmeros brasileiros por lá. Temos uma colônia muito grande em terras japonesas, mas nunca imaginei que tantos trabalhassem na noite. De tudo que é forma. Garçons, cozinheiros, arrumadores e faxineiros em profusão. Ah! Também tem muita gente se virando como hostess. É que os homens de lá adoram a noite desde que bem acompanhados de belas moçoilas. Não chega a ser prostituição, mas permite uma fácil aproximação para os carentes. Fumar e beber nestes ambientes são uma festa. Estava em casa! Afora as imensas dores por todo o corpo, sentia-me como em
qualquer lugar de São Paulo ou do Rio. Há, inclusive, uma série de bares e restaurantes com o nosso cheiro, nosso balanço e nossa cara. Até rodízio de carnes ao nosso estilo já existia por lá. E feito e servido por legítimos loiros de olhos claros da nobre linhagem gaúcha—ou seriam catarinenses? Tinha sempre a me escudar um valente guerreiro nativo chamado Maeda. Ele foi um dos colonizados por nosso futebol. Passou um bom tempo aqui, quando eles ainda acreditavam que éramos os melhores do mundo e sua economia permitia. Rodou por Londrina, Maringá e algumas cidades do interior de São Paulo. Quase um ano distante de suas origens, mas ele adorou. Se pudesse, estaria aqui por perto. O problema é que sua resistência era um pouco inferior a minha e a cada manhã o via com os olhos vermelhos e a face abatida dos que mal dormem. Pensei que fosse desistir algum dia, mas não. Agüentou firme até o final. Na última e esperada noite resolveu me dar um presente. "Hoje você é meu convidado", disse ele. Como não sou dado a desvalorizar tamanha simpatia, aceitei. E lá fomos nós, felizes por termos terminado nosso trabalho, a tentar desfrutar do alívio de seu final. Como um happy hour dos bons. Tivemos até a companhia temporária do prefeito da minha cidade, meu chefe– era secretário municipal de Ribeirão Preto nesta época—e ministro da economia do governo do presidente Lula. No final da noite, sobramos só nós dois—Maeda e eu. Arrasados, porém contentes. Como estava em seu carro e sem a responsabilidade de dirigir, deitei o banco para uma cochilada. Depois de alguns desconhecidos minutos, percebi que ele andava em círculos. A posição da lua, das árvores e dos postes era a mesma. Perguntei-lhe se estava perdido. Com a parcimônia que é peculiar aos japoneses, pediu-me desculpas e confirmou. Resolvi brincar com a situação. Disse-lhe que o encaminharia ao hotel em que estava hospedado, como se conhecesse alguma coisa daquele monstro de cidade. Continuei deitado. Vire à direita, siga em frente, dobre à esquerda, e assim por diante. Mesmo com alguns percalços como a rua sem saída ou uma contramão, chegamos à avenida que desembocaria no hotel. Neste
instante, ele parou o carro. Com os olhos esbugalhados me chamou de bruxo. Às gargalhadas lhe disse que minha bússola tinha funcionado da mesma forma que no Brasil e que ele não se espantasse. Afinal, Tóquio nem é tão grande assim, brinquei com ele.
Um futebol mais branco
Mas, retornemos ao Brasil. Naqueles anos oitenta já possuíamos uma população basicamente urbana por culpa da grande migração iniciada aproximadamente vinte anos antes. O crescimento exagerado e sem planejamento das grandes metrópoles brasileiras praticamente extinguiu nosso grande celeiro de jogadores das épocas passadas: os campos de várzea centralizados. Áreas descampadas onde os amantes do futebol—principalmente os desfavorecidos economicamente—podiam praticar o seu esporte predileto. Hoje, elas só existem nas periferias o que limita a possibilidade da pratica desportiva à maior parte da população. Por esta razão o número de praticantes diminuiu consideravelmente já que os espaços que foram destinados ao futebol no coração das cidades passaram a ser de propriedade privada e inacessíveis à maioria. Imagine o caldo de cultura para transgressões sociais existente em uma comunidade sem saneamento básico, sem recursos, sem moradia digna, sem escolaridade e sem poder praticar esportes. Foi nesta época que a elite passou verdadeiramente a se interessar e valorizar o futebol como profissão. Afinal, com o aumento da entrada de recursos na estrutura esportiva, jogar futebol passou a ser uma atividade muito bem remunerada. Até a forma como os atletas eram vistos se transformou: passaram a ser respeitados na estratificação social e adquiriram a oportunidade de conviver com a elite e a burguesia em seus salões abastados. Só que esta mudança de conceito restringiu os espaços para a profissionalização daqueles que eram provenientes da periferia e das favelas. A elite que já comandava a gestão do negócio passou a competir na disposição de buscar um lugar como atleta naquela estrutura. Era muito mais fácil o filho de sócio, que já freqüentava o clube desde sempre, ser visto e tentar uma oportunidade de se tornar jogador que aquele que nem de longe imaginava possuir um título de associado daquele clube. E assim começamos um processo que favorecia os mais abastados o que diminuía a qualidade dos nossos jogadores—sigo afirmando que para mim em geral os negros têm mais talento para este esporte—e tornava seus praticantes mais claros quanto à cor da pele. Muitas vezes acompanhei decisões
claramente manipuladas na escolha de quem seria o escolhido em uma avaliação para defender determinado clube. Quando ainda estava do juvenil, um dos meus companheiros de time era filho de um dos diretores do clube. Nada contra desde que ele tivesse qualidade e talento suficientes para fazer parte daquele grupo. O que realmente não condizia com a verdade. No entanto, ele foi um dos selecionados e permaneceu ao nosso lado durante anos. É claro que para conquistar um lugar como titular se fazia impossível, mas no seu lugar poderíamos ter alguém com muito mais futebol o que fortaleceria o time.
Algumas vantagens
Porém, esta convivência, em muitos casos, provocava mudanças de comportamento nos dois lados da história. A troca de experiências e de formação produzia um interessante crescimento em todos os envolvidos. Um exemplo disso é a história de dois garotos que por culpa do esporte se aproximaram e construíram uma bela amizade e com os quais convivi durante algum tempo no time que eu jogava.
Paulo era alto, forte, claro e tenso. Betinho tinha pouco mais de 1,5 metros de altura, pardo, magérrimo e feliz. Paulo foi criado para que através dos estudos acompanhasse a carreira do pai—brilhante advogado que o havia sido criado de forma ríspida e exigente. Estudou nas melhores escolas particulares e recebeu tudo do bom e do melhor quanto à alimentação e saúde. Suas matérias favoritas eram matemática, física e química. Nestas, ele arrasava. Gostava também de esportes. Praticou natação, vôlei, basquete e principalmente futebol. Era o que mais se destacava na visão das meninas do colégio. Foi campeão de sua cidade um par de vezes ainda infantil. Destacava-se enormemente. Certo dia foi visto pelo técnico da nossa equipe. No mesmo dia recebeu o convite para se transferir para cá e defender nosso time. Os pais vacilaram. Não tinha ainda quinze anos e era filho único. Seria uma temeridade aquela decisão. O menino insistiu. Estava envolvido demais com a possibilidade. Chorou, esperneou e finalmente conseguiu. Com uma única condição: deveria continuar privilegiando os estudos em andamento. Sem isso, nada. O outro era baiano. Havia nascido numa choupana à beira da lagoa Encantada entre Ilhéus e Itacaré na Bahia. Seu pai jamais havia colocado os pés fora daquele lugar até pouco tempo atrás. Era pescador. Desde cedo aprendera a enfrentar as artimanhas da baronesa—vegetação aquática que lá existia em grande quantidade. O garoto foi criado com a liberdade própria de quem sabe o valor disso. Pés descalços e vivacidade lhe permitiam horas e mais horas atrás de uma velha bola de couro rasgado presente de um cliente ocasional de seu pai. A pequena sala de aula da comunidade adaptada em uma casinha abandonada no fundo da rua raramente recebia a sua visita. Isso era motivo de grandes sovas de sua velha mãe. Ela sabia da importância daquela precária educação mesmo que, ela mesma, jamais tenha aprendido a ler ou escrever. Pura intuição. Mas o garoto era danado. Só queria saber de correr atrás da bola e começou a chamar a atenção. Depois de muito pensar o pai resolveu tentar alguma coisa. Antes disso, teve que se mudar para uma cidade vizinha à minha em busca de trabalho. E lá se foi toda a
família para o interior do Estado de São Paulo. Poucos meses depois de sua chegada, soube que haveria uma peneira no Botafogo— o time de Ribeirão onde começamos a jogar—naquele mesmo mês. Foi um vizinho que o alertou. No dia e hora marcados lá estavam os dois. Pareciam peixes fora d´água. Nem calçado o menino estava! Conseguiu um tênis emprestado e entrou em campo. Foi um show. Com quinze minutos já estava convidado. O problema era a distância de casa. Mais de 2 horas de viagem- o que era nada para quem nada tivera. Colocou a pequena tralha nas costas e voou atrás do sonho. Os dois chegaram ao mesmo dia e hora. Entreolharam-se desconfiados. Na secretaria tiveram que responder a um extenso questionário. Um respondia tudo. O outro nada sabia. Nunca havia sido vacinado, ora vejam! Foram colocados no mesmo quarto de alojamento. Ficaram sós por poucos instantes sem se falarem. Um deitou-se e pôs-se a ler um jornal. O outro só olhava as figuras do verso da página. De repente, um, incomodado com a situação, fechou o diário e colocou-o no chão. O outro se assustou e envergonhado desviou o olhar. O clima estava se tornando insuportável quando uma campainha é ouvida. O primeiro treino iria começar em pouco tempo. Correram para o vestiário. Paulo trocouse rapidamente. Betinho assuntava o ambiente—estava aprendendo como se portar. No treino, um marcou o outro. No jogo, vestiram a mesma camisa. Tornaram-se amigos. Meses depois, Betinho foi convidado por Paulo para visitar sua família durante uma folga. Não pestanejou. A cultura e a educação de todos imediatamente cativaram Betinho que perguntava sobre tudo e tentava assimilar cada palavra dita. Quando retornaram era um rapaz diferente. Resolveu estudar para se aproximar da situação do amigo. Nas férias retribuiu o convite e foram para a Bahia passar uns dias na casa dos tios. Lá, Paulo conheceu o outro lado da moeda: levantar antes do amanhecer, arrumar as iscas e redes, mesa sem fartura, trabalho dobrado. Um dia, ele foi convidado por Betinho para pegar um baba (pelada) no campinho de terra com os amigos de infância. Corria, corria e não conseguia pegar na bola. Olhou para o outro como a
perguntar: como é que eu faço? A resposta foi uma gostosa gargalhada e um abraço acolhedor.
Surgem os professores
Outra mudança flagrante na realidade do nosso futebol, com a sua valorização, foi o aparecimento de diversas profissões paralelas. Uma delas e a que mais interfere na formação de um jogador de futebol é a de treinador de escolinhas de futebol que proliferaram com o desaparecimento dos campos de várzea. Infelizmente não temos no Brasil uma regulamentação para esta atividade e nem uma escola de formação deste profissional. Com isso, temos aqui indivíduos com função educativa sem uma qualificação adequada o que gera muitos transtornos para o desenvolvimento dos nossos talentos. Isso sem esquecer que as condições dos pisos em que se passou a praticar o futebol se tornaram muito melhores o que, creio, desestimula a evolução de vários dos fundamentos exigidos para esta prática. Pois é, estes treinadores de escolinha que pouco conhecem de pedagogia e muito menos de futebol só tendem a prejudicar os nossos futuros atletas. Não os orientam para melhorar seus desempenhos e, pior, tendem a limitar a espontaneidade e liberdade tão importantes neste esporte. Desde cedo valorizam alguns aspectos do anti-jogo como a marcação dura e muitas vezes violenta e os aprisionam na questões táticas muito precocemente. Outra característica marcante é a hiper-valorização dos treinamentos físicos muito perigosa na fase de crescimento da criança. Além de aumentar a limitação dos diversos gestos esportivos. Não é a toa que
muitos por aqui apregoam que o futebol característico dos brasileiros (o futebol-arte) tenha sucumbido. Discordo frontalmente. Parece-me mais uma blasfêmia que poderia muito bem ter se originado dos rincões onde jogar este esporte, muito mais que um esforço desperdiçado, é puro desencanto. Nunca por um dos nossos. Arte para o futebol jamais é adjetivo; é a sua essência. A beleza intrínseca do movimento e da harmonia são meios ideais de cultura para a alegria e a criatividade. Nosso povo, historicamente esmagado pela colonização que insiste em se fazer viva, explorado e excluído em sua imensa maioria e que permanece com os queixos elevados e com a esperança intocável, é de se admirar. E só conseguiu atingir esta capacidade de sobrevivência por suas incomparáveis características. Quando qualquer de nós se aproxima de alguma forma de expressão artística é que podemos perceber a sensibilidade que exala de cada poro. Como podemos explicar que cá por estas bandas surgissem tantas genialidades sem que, em sua maioria, tenham tido quaisquer facilidades para seus ofícios? Em tantas áreas poderíamos desfilar um sem número de figuras excepcionais que se destacam por suas criações e capacidades. No esporte não é diferente. Do bando de desnutridos que somos, nasceram inúmeros gênios como Pelé e Garrincha. Nossa plena expressão social e maior embaixador cultural foi posto em um lugar bem especial por todos os apreciadores deste esporte exatamente por nossa especialidade: espontaneidade, dom, criatividade, alegria e habilidade. Isto é que determina o que é arte! E arte de qualidade ímpar. Não é a toa que nossos maiores jogadores desfilam seus dotes, espalhados por todo o planeta. Agora, existe arte de boa e má qualidade. Quando escolhemos para fazer parte de uma equipe alguém que possui como conteúdo filosófico a destruição do jogo, não estamos percebendo nada de positivo nesta atitude. E as conseqüências são funestas. Escolhemos, gradativa e melancolicamente, um péssimo caminho para trilhar. Era muito melhor quando não tínhamos "professores" para estes artistas. Até o momento em que a quantidade de recursos gerada pelo
segmento se limitava a centenas de milhões de dólares, os mais frágeis tinham campo aberto para desfilar seus talentos. Os donos do poder limitavam-se a comandar os clubes e entidades associativas. Os atletas eram discriminados. A atividade era "marginal". Portanto, o espaço era destinado para negros e pobres que possuem a ginga inerente a esta arte. E ela desfilava e se desenvolvia na liberdade das ruas, parques e praias. Quando o negócio cresceu, criou-se um gargalo de acesso para privilegiar uma outra classe tão comum por aqui: os protegidos. Só que estes não têm a mesma capacidade. Para manter o mesmo nível seria necessário que houvesse uma outra preocupação básica: qualificar estes técnicos. Principalmente porque o encaminhamento deixou de ser natural e passou a ser monitorado por "especialistas" sem a mínima capacitação. Mas nada foi feito. Até porque nunca tivemos quem pensasse ou planejasse algo para o nosso futebol. Quando descuidamos da qualidade dos recursos humanos que devemos desenvolver para melhorar o potencial de nossos atletas, estamos definitivamente tornando aleatório o futuro de nosso esporte. Não, a arte não acabou. Está mais viva do que nunca. O que nos falta é competência para percebermos que isto é um espetáculo e deve ser tratado como tal. Quando propomos um futebol de resultados, estamos querendo a dança sem leveza, o canto sem coração, a interpretação sem técnica. E só o faz desta forma quem não conhece e respeita a beleza de qualquer expressão artística. Quem não possui o dom e a sensibilidade deve consumir a arte de outrem, não renega-la.
Involução gradativa
Se aqueles que gostam de futebol tiverem a paciência de acompanhar a evolução dos nossos jogadores de futebol desde que estes chegam a um determinado clube para serem preparados a ascenderem às equipes principais, verão o absurdo que está sendo feito por estes senhores. Este tipo de preocupação nasceu porque eu tentava entender as possíveis causas da decadência—na qualidade dos nossos craques—de nosso esporte mais importante. É claro que o nascedouro de tudo encontra-se na pouca qualidade na gestão do nosso futebol. Mas também existem estes aspectos periféricos ou conseqüentes que podem servir como ponto de retomada caso tenhamos a possibilidade de alterar o curso das coisas. Passei a assistir partidas das mais diferentes categorias em que possuímos equipes nacionais. A constatação imediata é que gradativamente destruímos a capacidade de nossos meninos. Aos primeiros sinais da adolescência temos um potencial de altíssima qualidade. Se nesta idade enfrentarmos culturas como a mexicana e a hondurenha, para ficar apenas em dois exemplos, notaremos uma impressionante disparidade—a nosso favor. Poucos anos depois, já não existem muitas diferenças. Pois neste período fazemos de tudo para retirar as características marcantes de nossa forma de expressar – alegria, beleza, liberdade e criatividade – do cotidiano de todos eles. Com isso estamos castrando o que de melhor possuímos. Passamos a ver um bando de garotos cuja mais clara filosofia é a destruição e o negativismo. Perde-se neste caminho o prazer do jogo bem jogado, do drible, da construção de lances bonitos e da cabeça erguida buscando um passe perfeito. Nem todo mundo percebe a relação entre a falta de ética, de
planejamento e de estratégia na condução política deste processo e a crescente incompetência dentro do campo. Creio que a análise deste fato e suas origens podem aclarar algumas posturas. Tudo isto só está acontecendo por termos um tipo de ação ideológica que não respeita as nossas mais enraizadas essências. E quando, por qualquer motivo, agredimos a cultura expressa na nossa forma de agir estamos fadados à incapacidade e ao descrédito. E esta falta de cuidados com a formação dos profissionais mais importantes para o desenvolvimento dos nossos talentos é que limita chegarmos a níveis ainda maiores de capacitação desta matéria prima tão valorizada. E não estou exagerando não, apesar de termos alguns dos maiores jogadores do mundo. Se tivéssemos esta estrutura idealizada, haveria muitos mais e com melhor qualificação. Tendo professores não habilitados, como imaginar alunos excepcionais? Limita-se o saber pela ignorância. É que para preservar seus parcos salários, eles mantêm uma postura discriminatória sobre os mais talentosos passando a valer exclusivamente o resultado do jogo e jamais a forma como ele é conseguido. Como se o sucesso em qualquer atividade não fosse correspondente ao nível de competência. Isto é decorrente de uma filosofia-existente há pelo menos 20 anosque nos leva a acreditar na idéia de que é melhor perder de forma lógica (jogando mal e feio) do que correr o risco de ganhar com brilho. É a presunção do lixo—esta, aliás, não privilegia só este segmento aqui por estas bandas. Para cada Zico que possuíamos, temos agora, um jogador qualquer.
Desastre na colonização africana
Este processo filosófico de se buscar enjaular a liberdade das expressões no futebol também aconteceu no futebol africano. Diria até que os treinadores europeus estão produzindo uma nova e tão contundente colonização na África. Principalmente na África negra. Não tenho dúvidas que o continente que mais evoluiu seu futebol nas últimas décadas foi o africano. Em particular a República de Camarões e a Nigéria. As seleções destes países já chegaram a atingir um patamar de qualidade que os aproximou do chamado primeiro mundo do futebol. As vitórias em Olimpíadas e grandes performances em mundiais concretizaram a excelência de seu produto. Além de serem vizinhos, estes países viveram muito de suas existências como protetorados ou colônias, só conseguindo a sua independência na segunda metade do século passado. Além disso, é importante frisar, parte de Camarões—o chamado Camarões do norte—uniu-se à Nigéria quando do final das lutas pela independência nos dois países. Será que esta história comum e a proximidade física proporcionaram uma maior evolução no futebol desta região em relação a outros países africanos? É possível. É claro que as características físicas de um povo o induzem a um determinado comportamento esportivo. Os negros, eu costumo acentuar, têm, em virtude de suas particularidades, muito mais possibilidades de expressões corporais adequadas para a prática do futebol que os de outra raça. São criativos e libertos, possuem um ginga, uma maleabilidade corpórea que é determinante em várias formas de arte como a dança, a música e o próprio futebol. No entanto, existem muitos outros parâmetros importantes que induzem uma maior ou menor qualidade no jogo de quem quer que seja. Não é a toa que outros países da mesma África ainda não despertaram os talentos que com certeza possuem. Alguns somente há pouco
começaram a trilhar este caminho; como Senegal, por exemplo. Camarões e Nigéria, apesar de terem tido colonizações de origens diferentes, sofrem até hoje as mesmas conseqüências: extrema pobreza agravada por uma eterna instabilidade política que gerou uma infinidade de golpes de estado e grandes conflitos que só há poucos anos deram lugar a movimentos pacíficos por um estado democrático. França e Inglaterra, seus algozes políticos, possibilitaram uma maturação especial na prática do futebol nestes países—talvez como compensação ou como outra forma de exploração. Descobriram vários talentos nesta zona equatorial e os levaram para desenvolver suas artes no velho mundo. Em particular os franceses que—provavelmente em função da grande qualidade da geração onde pontificavam Platini, Tigana e Giresse e que foram protagonistas junto a nós brasileiros dos melhores momentos das copas de 82 e 86–, despertaram as magias negras e acolheram a maioria dos representantes desta região. Com isso aflorou a capacidade dos dois países. A campanha de Camarões no Mundial da Itália em 90 chamou a atenção de todos para a evolução do futebol africano. Após este episódio, os olhos do mundo esportivo se voltaram para lá e uma verdadeira legião invadiu a maior parte dos países europeus onde este esporte predomina. Hoje, há atletas de quase todos os países africanos disputando algum campeonato europeu. Por outro lado, arrisco dizer, o mesmo futebol africano que se desenvolveu a partir da maior interação com os franceses devolveu com juros a mesma moeda. Depois de um período de ostracismo o futebol francês voltou a ser de ponta com a mistura de culturas e de características presentes em suas equipes e chegou ao seu primeiro título mundial em 1998. Não nos esqueçamos que Zidane—seu melhor jogador e um dos maiores do planeta—é originário de uma antiga colônia. Árabe é verdade, mas que antecedeu a maioria negra no mapa do futebol já que Marrocos, Argélia e Tunísia de vez em quando aparecem em um mundial. Mas hoje, os times de Nigéria e de Camarões estão anos luz do que já foram. Apresentam um jogo muito mais burocrático e triste.
Perderam a ingenuidade e, por conseqüência, sua maior qualidade: a irreverência. Assim se tornaram presas fáceis para seus adversários. Acredito que os treinadores que para lá foram levados para quem sabe oferecer-lhes maturação, foram os maiores culpados deles terem perdido a espontaneidade e, por conseqüência, o belo futebol.
OS PATRÕES NO FUTEBOL
Os primeiros cartolas
O futebol no Brasil nasceu e cresceu dentro dos clubes esportivos. Os primeiros passos dos praticantes de futebol foram dados dentro das fronteiras das sociedades organizadas para o convívio social e a pratica desportiva. Estas estruturas, em geral, eram formadas por seres originários das elites do país: pessoas de uma mesma classe
social e com interesses semelhantes se uniam para estimular o contato entre suas famílias e para fazer negócios sem o incomodo de ter ao lado indivíduos de outros segmentos sociais. Como o futebol foi trazido para cá por um inglês, foi nas organizações formadas por indivíduos de origem inglesa que este esporte gradativamente foi criando o seu espaço. Com o tempo, estes clubes passaram a organizar competições entre as equipes formadas por seus associados. Nasciam ali os primeiros dirigentes esportivos do futebol brasileiro mesmo que—por não ser, naquele instante, um esporte tão popular—ainda não pudessem ser identificados como tal. Eram os presidentes destes clubes que assumiam a responsabilidade de responder pela estruturação e organização de suas equipes esportivas, incluindo-se aí o futebol. As competições gradativamente foram ganhando corpo e com isso a necessidade da criação de uma Liga que pudesse, de forma pretensamente imparcial, resolver os conflitos de interesse entre os participantes se impôs. Criaram-se então as Federações estaduais e uma Confederação nacional. Este organograma formado pelos clubes, federações e confederação permitiu o nascedouro de uma classe de dirigentes esportivos cujos integrantes eram pessoas apaixonadas pelo jogo e que possuíam como objetivo colaborar com as sociedades da qual faziam parte e para o crescimento deste esporte no seio da sociedade brasileira. Isso, no longínquo início do século passado. Mas o futebol não se manteve restrito às sociedades da elite econômica e política do país e ganhou as ruas, as periferias, o povo. Isto o tornou extremamente popular. Com isso, novas organizações—originadas de outras classes sociais—começaram a aparecer e a exigir que fossem incluídas nas já organizadas estruturas das federações. Com certa dificuldade a princípio, o que de forma alguma refreou a necessidade de se dar espaço a elas. E assim foi sendo definida a nova ordem social do futebol brasileiro em que se podia perceber claramente uma casta burguesa que se auto-intitulava fundadora do futebol no país e outras menos valorizadas de origem mais popular.
Em geral estas estruturas mais populares se originavam de associações operárias de trabalhadores da indústria que o mais das vezes estavam situadas nas periferias das grandes cidades. Nestas condições havia uma clara correspondência entre a realidade dos galpões industriais e dos gramados de futebol: os patrões eram os dirigentes esportivos respondendo pela organização, pelas condições de treinamento e pelo transporte dos atletas enquanto que os empregados eram os jogadores que defendiam as bandeiras do time e da fábrica. Tinha-se então duas formas de organização absolutamente diferentes em sua essência: uma formada pelos filhos dos associados dos clubes burgueses e outra formada—ainda que administrada pelos patrões— por indivíduos originários de segmentos mais populares. O que em nosso país representa exatamente o confronto entre ricos e pobres e brancos e negros ou descendentes destes. Como os negros pouco a pouco foram tomando o espaço que antes era reservado para a elite na pratica do futebol, por sua competência e habilidade, restou à burguesia manter a hegemonia administrativa para preservar o seu espaço dentro desta estrutura. E assim se criou o modelo que viria a ser a nossa realidade futebolística por muitos anos—até que este esporte se tornasse um grande negócio, a partir dos anos setenta, o que veremos mais à frente. Os dirigentes esportivos no Brasil se caracterizaram por sua paixão pelos clubes que representavam ainda que gradativamente tenham começado a valorizar a importância dos cargos que exerciam. Devemos ter em conta que o futebol tem um peso tão grande no Brasil que ser presidente de um clube de futebol torna a pessoa às vezes mais conhecida que o governador do estado ou o prefeito da cidade. Um dos dirigentes com o qual trabalhei gostava de afirmar sempre que podia, sendo presidente do Corinthians—o clube mais popular de São Paulo, a principal cidade do país–, que ele representava o quarto poder do país após o Presidente da República, o Governador do Estado de São Paulo e do prefeito desta cidade. E isto não fugia muito da realidade ainda que não fosse um cargo
político na acepção da palavra. É que o principal dirigente de um clube popular no país é muito mais conhecido, mais ouvido e tem mais poder de influenciar a opinião das pessoas em geral do que a maior parte dos políticos.
Gestores à moda antiga
E esta era uma das razões porque eles se aproximavam do futebol: a popularidade decorrente do cargo. Até porque em geral estas pessoas tinham excelente posição social e econômica e eram mantenedores dos clubes que dirigiam muitas vezes com grande prejuízo para os seus negócios. Principalmente quando destinavam muitas de suas horas de trabalho para o clube esportivo deixando um vazio administrativo em suas empresas ou quando faziam exagerados investimentos na contratação de atletas e avalizavam as despesas do dia a dia dos clubes de menor receita. No primeiro clube que atuei como profissional, eu tive um presidente que era tão apaixonado por futebol e pelo clube que praticamente abandonou a sua empresa de negócios imobiliários pelos longos quatro anos que comandou o clube. Ele passava o dia todo no estádio, resolvendo problemas, discutindo estratégias e assistindo a todos os treinamentos da equipe. Era um presidente em tempo integral. Este tipo de comportamento é mais comum nos países em que as estruturas esportivas são organizadas como empresas—o que não é o caso do Brasil–, onde os dirigentes esportivos—profissionais do mercado—são contratados para exercer a função executiva, mas aqui, naquele tempo, era extremamente raro, principalmente se levarmos em conta que grande parte das reservas financeiras destes clubes provinha das riquezas geradas nas empresas privadas dos dirigentes.
O que mais me chamava atenção nestes dirigentes, mesmo antes de ingressar no meio do futebol, é que muitos deles eram figuras folclóricas e de gestos rudes, fruto de uma formação educacional deficiente. Como haviam se transformado em pessoas bem sucedidas no comercio ou na indústria e adquirido uma situação financeira confortável, buscavam o reconhecimento público através da gestão esportiva. Assim se tornavam conhecidos e valorizados pela sociedade. Esta visibilidade toda também expunha as suas fraquezas.
Refeição sofisticada
Para exemplificar como a simplicidade da formação dos nossos dirigentes, associada com as suas novas posições sociais, provocava determinadas situações, no mínimo, curiosas, descreverei uma das experiências marcantes que tive: apesar de nos meus anos de futebol ter tido uma série de atritos com os dirigentes dos clubes que defendi, até porque havia uma enorme diferença na forma como entendíamos o mundo, eu sempre procurei preservar as nossas relações pessoais alheias aos embates que travávamos. A convivência, em geral, era até cordial, ao contrário do que muita gente imagina. Certa vez, quando estava discutindo uma renovação contratual não muito fácil, certo presidente de clube resolveu me convidar para um jantar na sua residência. Aceitei com prazer e marcamos para a semana seguinte. Lá chegando no dia proposto, surpreendi-me
com o tamanho da casa. Logo na entrada havia uma enorme sala de estar que possuía em seu interior inúmeros jogos de sofá. Provavelmente a família deveria receber muitos amigos semanalmente pois era possível acomodar dezenas (talvez mais de uma centena) de pessoas naquele ambiente. Aquilo se assemelhava, e muito, àqueles imensos salões das lojas de móveis. Imediatamente fui convidado a conhecer alguns cômodos da casa e nos acomodamos na sala da jantar pois o mesmo estava quase na hora de ser servido. Fomos atendidos por um grupo de garçons muito atenciosos que volta e meia me levavam até a cozinha para apreciar o trabalho das cozinheiras e, como não podia deixar de ser, para dar autógrafo a todos—até porque imagino que um não torcedor de futebol jamais trabalharia naquela casa ou teria que esconder muito bem a sua ignorância esportiva. Chamou-me a atenção o número de talheres distribuídos igualmente nos dois lados do prato. Eram vários, muitos, muitos mesmo e das mais variadas formas. Como jamais me interessei pelos modos como as pessoas de melhor condição econômica recebem seus convidados e como na verdade poucas vezes na vida, até então, tivera a oportunidade de conviver com esta classe social, era natural o meu espanto e até certo receio de não me portar convenientemente para a ocasião—naquele tempo, eu ainda me dava ao luxo de ter este tipo de preocupação; coisas da juventude. Decidi naquele exato instante que acompanharia os que primeiramente fizessem uso dos talheres quando da chegada dos pratos. Enquanto estes não eram colocados na mesa, passei a observar a decoração da casa. Não tinha nada de simples, mesmo que pouco pudesse entender das obras em tela e escultura e da forma como estavam distribuídas. Para mim parecia ser algo aleatório, mas ficavam bastante visíveis e eram de aspecto agradável. A conversa, quando não escapulia para as nuances do contrato em discussão, estava muito interessante e alegre, principalmente porque meu pai me acompanhava naquela visita. Ele era uma figura fascinante e sempre foi um especialista em
agregar seres humanos. Com isso o tempo foi passando e nem nos demos conta da hora que já se fazia tarde. Foi quando o dono da casa resolveu pedir que se servisse a refeição. Logo após, surge o que seria a entrada. Meu deus, pensei. Não acreditei no que estava vendo se aproximar e ser colocado bem na minha frente. Esbelta, imponente como um Napoleão nos seus melhores dias ou como a torre Eiffel toda iluminada na passagem para o século XXI, aproximou-se dos meus olhos uma peça gigantesca de base diminuta, com uma haste magérrima—como eu ainda era—e uma graciosa taça, repousando na sua extremidade superior, emoldurada por quatro camarões dos grandes embebidos em um molho rose que ocupava metade do volume interno do recipiente. Imediatamente lembrei das dúvidas anteriores e me voltei para as facas, grafos e até para as minhas colheres. Algumas dentre elas cujo desenho me parecia absolutamente desconhecido. Olhando para o obelisco estacionado a minha frente alternado com discretas olhadelas nos talheres ao alcance das minhas mãos tentava, sem sucesso, imaginar qual daqueles seres me ajudaria a ingerir aquele néctar cujo aroma era inebriante e deveria estar suculento. Decisão que se impunha pela fome que já me assaltara de há muito. O pior é que ninguém se mexia. Nenhum dos comensais se dignou a abrir os trabalhos do jantar—imagino que tinham a mesma dúvida que eu. Depois de longos e intermináveis minutos e já me dando conta do quão impossível seria comer aquela especiaria sem, no mínimo, um envergonhado banho de molho caso utilizasse algum artefato metálico, apelei para a mais simples lógica e peguei os crustáceos pelos dedos mesmo e levei-os à boca. Todos, sem exceção, acompanharam-me. E aí, fiquei me perguntando: para que todo aquele arsenal em volta do prato? Talvez tenha sido para nos apavorar ou, quem sabe, só um descuido do anfitrião.
Opção entre Futebol e Medicina
Durante uma das gestões desde mesmo dirigente, foi que enfrentei uma das mais interessantes disputas da minha vida profissional— exatamente um ano antes do estranho jantar acima citado. Eu havia me transferido para o Corinthians e para São Paulo logo após a minha graduação em Medicina acontecida em 1977. Aquele foi um período de muitas dúvidas acerca do meu futuro, pois não tinha certeza do melhor caminho a tomar: continuar no futebol ou investir na carreira médica. A decisão foi tomada no último momento do último dia já que na manhã seguinte, caso resolvesse fazer a minha especialização em ortopedia, deveria iniciar o meu curso de residência médica para o qual havia me qualificado. Durante a prova oral para esta qualificação aconteceu um fato interessante e de certa forma desagradável já que eu ainda não possuía uma definição quanto ao que realmente queria. É que meu professor começou a argüição pela pergunta mais lógica e esperada: se realmente eu havia me decidido pela medicina. Respondi que sim—já que estava ali para isto–, porém sem nenhuma convicção. Mesmo assim ele continuou o processo e eu pude conquistar a vaga. Vaga que declinei quando não consegui dormir na noite anterior ao início do curso. Entendi esta ansiedade toda como um recado do que me esperaria no futuro e decidi abrir mão temporariamente da carreira médica para tentar vôos maiores no futebol. E estes passavam necessariamente por uma transferência para um clube
maior de um grande centro como Rio de Janeiro ou São Paulo para que tivesse mais condições de almejar uma convocação para a seleção brasileira e, se possível, a chance de disputar uma Copa do Mundo. Condição que eu sabia ser de complicada aplicação caso permanecesse jogando no interior do país, pois mesmo tendo sido relacionado entre os quarenta que poderiam ir à Copa da Argentina, reconhecia ser muito difícil que um atleta de um clube menor fosse alçado à elite do nosso futebol. Pelo menos naquele tempo. Tempo em que as transmissões por televisão privilegiavam as grandes equipes o que só dificultava a exposição das qualidades dos jogadores dos times menos tradicionais. Era natural então que estes jogadores do interior—e por isso pouco conhecidos do grande público—fossem contratados para jogar nos principais clubes do país e só depois chegassem à seleção nacional. Decisão tomada restava só aguardar que um grande clube voltasse a me procurar. Durante os quatro anos em que me dividi entre os estudos médicos e o futebol profissional, recebi uns 40 convites dos mais importantes times do país para me transferir e defender suas cores, mas recusei a todos por ter absoluta certeza que seria impossível terminar o meu curso de medicina em outra cidade ou em outras condições. Era questão de consciência me formar em medicina já que além de ser uma grande paixão era o meio pelo qual teria um futuro definido pela frente e certa independência em relação ao futebol enquanto profissão. Só que nestes primeiros meses de dedicação exclusiva ao futebol, não apareceu ninguém. Talvez cansados das negativas anteriores ou desconfiados de que aquela decisão não fosse definitiva.
Transferência para a metrópole
Até que no inicio do segundo semestre daquele ano de 78, logo após a Copa vencida pela Argentina, surgiu um pretendente. Um não, dois. O São Paulo, que viria a ser dez anos mais tarde o clube onde se consagrou meu irmão Raí, foi o primeiro interessado. Mesmo não tendo tido acesso à negociação entre o meu clube de então—Botafogo de Ribeirão Preto—e o time da capital paulista, soube que seria uma operação tríplice: o São Paulo estava fazendo uma troca com o Corinthians envolvendo alguns jogadores e certa quantia em dinheiro. Este recurso seria utilizado para a minha contratação. Ou seja, o São Paulo receberia dois atletas se não me engano e mais determinado capital em troca de um dos seus jogadores. Os dirigentes da minha equipe aceitaram esperar uma semana para que todo este processo pudesse ser finalizado o que acabou não acontecendo. É que o presidente do Corinthians tomou conhecimento da estratégia são-paulina e, ainda que não me conhecesse o suficiente, resolveu inverter o rumo do negócio. Gastou o quanto pode o tempo que estava apalavrado pelos outros dois clubes para fazer uma tentativa de me contratar. E foi o que ocorreu. Enquanto um dos seus auxiliares foi designado para representá-lo em uma definitiva reunião com os colegas sãopaulinos na capital paulista, ele se dirigia para Ribeirão Preto para enterrar a pretensão dos adversários. Os dirigentes de Botafogo e Corinthians se encontraram em uma chácara nos arredores da cidade e ali passaram quase todo o dia a discutir os detalhes da transação— a maior da história do clube. Com tudo resolvido me convidaram para que ali fosse lhes encontrar e definir as condições do meu contrato. Como a pretensão de me transferir era minha, não coloquei nenhuma objeção e aceitei os termos que a mim foram propostos. Porém, não contava com o alto custo de vida da maior cidade do país e com a agravante de ter que assumir despesas que não possuía
anteriormente—já que até ali, eu habitava uma casa da família— como o aluguel do apartamento onde iria morar.
Debate salarial
Para terem uma idéia, metade do que recebia mensalmente era dirigido para pagar este aluguel. Com isso, passei todo o meu primeiro ano no Corinthians em situação financeira limitada, pois já tinha três dos meus filhos. Uma família grande e um orçamento apertado. Como nestes primeiros meses de Corinthians havia conseguido bom destaque, acabei sendo convocado para o primeiro jogo da seleção após a copa do ano anterior pelo treinador Cláudio Coutinho e dali não mais saí. Com a valorização do meu trabalho entendi que poderia tentar um novo acordo com o clube já que o meu salário não era condizente com o novo status—representava 10 a 15% do que um jogador do mesmo nível recebia. Todo animado com a possibilidade real—pelo menos na minha cabeça—de resolver de vez os problemas financeiros imediatos, procurei o presidente do clube para lhe colocar a minha pretensão: como eu havia ainda um ano de contrato, poderíamos antecipar a renovação do mesmo e amplia-lo por mais um ou dois anos. Em troca ele adequaria os valores—naquele momento, desatualizados. Qual não foi a minha surpresa quando ele negou veementemente a alternativa proposta e definiu que jamais fizera, e, portanto, jamais faria algo semelhante. Senti-me desolado. Para mim, era impossível que alguém pudesse ser tão cego a ponto de não ver que aquele seria um extraordinário negócio, principalmente para o clube. Eu fiquei possesso, mas como
não havia outra solução disponível, resolvi enfrentar a situação voltando-ma para os meus direitos. Como os valores de uma possível transferência para outro clube eram proporcionais ao ganho que os atletas tinham, decidi que a partir daquele instante—mesmo que agravando as minhas já destruídas reservas econômicas—, eu não receberia nada além do que constasse no velho contrato. Digo isso porque as premiações por vitória eram computadas como salário. Então, daquele momento em diante, eu deixaria de receber aquilo que havia me mantido durante os últimos 12 meses. E foi uma guerra. Nas primeiras vezes em que eu me recusara a receber os prêmios, todo o setor administrativo do clube estranhou, mas não se deu conta da profundidade daquele gesto. Que só viria a se tornar público alguns meses depois quando eles tentaram me pressionar especulando sobre um eventual depósito em juízo o que rechacei de imediato. E assim foi durante boa parte do segundo ano de contrato. Como resultado deste simples ato de exercício de um direito—pouco usual no nosso país, principalmente neste meio— passei a representar um perigo para as instituições, tamanha reação produziu. Mas a mais importante foi que eu naquele momento possuía um alto grau de valorização no sistema e um valor relativamente pequeno no mercado de transferências que me possibilitava até pensar em utilizar alguma forma de viabilizar o resgate da minha liberdade com recursos próprios—já que havia feito alguns contratos publicitários que me deram alguma folga financeira. Além do que, passei uma mensagem clara e direta a todos os meus companheiros de profissão: que eles deveriam conhecer melhor os seus direitos explicitados na legislação vigente na época e que já não eram muitos. O final deste embate com a direção do Corinthians aconteceu um ano após o início deste confronto e acabei por renovar o meu contrato com o time por um valor excepcionalmente maior do que aquele que recebia até então: saltei de um salário de 26 mil para um milhão e duzentos e cinqüenta mil cruzeiros por mês. O que correspondia a mais de dez vezes do que havia pleiteado um ano antes. Como vêem, valeu a pena o arrocho.
Atração pelo poder
Mas, voltemos ao antigo tema. Outra razão endêmica na busca da popularidade oferecida pelo futebol tinha cunho político. Alguns dos nossos dirigentes, após um período á frente de alguma estrutura esportiva, tentavam—e muitos conseguiam—alcançar postos na estrutura de Estado. Estas candidaturas estavam claramente apoiadas na popularidade produzida pelo futebol e da facilitação na captação de recursos para as campanhas políticas—no Brasil, elas são financiadas pela iniciativa privada e não com recursos públicos como em outros países. Adilson Monteiro Alves, o dirigente do Corinthians no período da democracia corintiana que mais possuía identidade com a ideologia política que nos conduziu àquele movimento, alguns anos depois foi atraído para a vida pública que acabou modificando as suas convicções. Não que eu tenha alguma coisa contra a posição tomada por ele. É que nós tínhamos um ideal de transformação para o nosso país que necessariamente exigiria uma postura muito mais agressiva no discurso e na ação política do que a opção feita por ele. E com isso acabamos perdendo um dos bons quadros políticos que nosso esporte possuía.
Aprendendo com o voto
Sobre a chamada democracia corintiana é fundamental que esclareçamos que ali a relação entre os jogadores e os dirigentes do Corinthians se transformou em uma grande e única experiência no meio do futebol. Estávamos no início dos anos oitenta e a ditadura militar ainda era uma realidade em nosso país. Desde o golpe de Estado em 1964 vivíamos sob um regime fechado onde não tínhamos liberdade de opinião e de organização e nem escolhíamos nossos maiores representantes. O voto era uma entidade tão rara que muitas vezes mais parecia uma lenda para boa parte da população brasileira. No final de 81 tínhamos uma equipe fraca que fizera um péssimo campeonato e disputaria uma espécie de segunda divisão do campeonato nacional—um absurdo que permitia que ainda dentro da mesma temporada uma equipe pudesse alcançar a principal divisão. Instalou-se então um grande caos no clube o que provocou uma mudança radical na gestão esportiva com a demissão de alguns e a chegada de novos dirigentes. O que seria o nosso diretor de futebol era o acima citado Adilson Monteiro Alves. Adilson era um sociólogo que, segundo suas próprias palavras iniciais, nada entendia de futebol e de suas nuances. No primeiro contato que tivemos, fiz ver a ele um novo modelo de relacionamento que poderia ser empregado com a expectativa de resultados extraordinários. Esta sempre foi a minha convicção a partir das experiências que havia tido no futebol. Nunca acreditei em nada cujas decisões são tomadas de cima para baixo em qualquer organograma de poder. Particularmente neste meio que se caracteriza por uma inversão de valores. É que os empregados de uma equipe de futebol—os seus artistas—possuem muito mais poder político que os seus empregadores. São pessoas conhecidas, às vezes mundialmente, são respeitadas no que fazem e são muito ouvidas e acompanhadas. Isto lhes dá uma força incomparável. Afinal, este é um esporte extremamente popular em todo o planeta. O modelo apresentado ao novo dirigente era baseado fundamentalmente na participação de todos nas decisões concernentes ao interesse coletivo. E esta participação se daria a partir da votação dos mais variados temas
sendo que cada indivíduo teria o mesmo peso que os demais, independente de sua posição naquela sociedade. Os roupeiros do time, por exemplo, teriam o voto de mesmo valor que o dirigente ou o atleta mais valorizado. Afinal, aquilo que estaríamos discutindo afetava a todos da mesma forma. Com isso, construiríamos uma comunidade mais participativa, mais envolvida e mais responsável pelos caminhos que trilharíamos. Felizmente ele tinha os mesmos sentimentos quanto à forma de relacionamento que eu estava propondo e passamos, a partir dali, a exercer os direitos recém adquiridos. E para tudo se votava. Para saber a que hora treinaríamos, em que dia e período nós viajaríamos e até para decidir se deveríamos participar ativamente da política do clube que nos empregava porque todos nós nos tornamos associados do mesmo. E assim foi que aconteceu nas eleições seguintes quando conseguimos eleger três dos nossos companheiros para o conselho administrativo do clube. Até na escolha das contratações nós participávamos. Uma lista das possíveis contratações era apresentada ao grupo e muitas vezes a decisão passava pelo voto da maioria. Em uma das ocasiões mais determinantes daquele período, resolvemos fazer uma experiência de auto-gestão. Decidimos escolher para ser o nosso treinador um dos nossos que se encontrava em final de carreira. Neste processo encontramos ainda mais dificuldades com a opinião pública que reagia de acordo com as avaliações reacionárias de boa parte da mídia. Mas esta forma de relacionamento nos foi muito útil no processo de maturação do movimento que daria grandes frutos a seguir. Muitas vezes o nosso presidente acompanhava as nossas reuniões para a tomada de decisão e eventualmente exercia o direito de representar o clube nas votações apesar de que fosse o diretor de futebol o representante do clube. As posições opostas eram defendidas de forma objetiva e às claras pelos postulantes e depois se levava ao voto que determinaria a posição coletiva por maioria simples. Era uma verdadeira família política. Esta rotina acabou por transformar muitos dos nossos companheiros em pessoas mais
atentas aos seus direitos, mais maduras e portadoras de maior conhecimento. Todos cresceram muito com esta experiência. Principalmente porque a reação não tardou a chegar. E ela veio forte e intempestiva. É que como nós estávamos em um meio muito popular, falando de política de uma forma muito mais acessível—a linguagem do futebol atinge muito mais brasileiros que qualquer linguagem técnica por culpa da dificuldade de acesso à educação para grande parte da população de baixa renda—ao entendimento e pior, exercendo um direito que nos havia sido tomado desde o golpe de Estado de 1964, a repercussão foi extremada. Toda a face conservadora da nossa sociedade se voltou contra o nosso movimento o que provocou uma grande discussão nacional sobre tudo o que se relacionava com o futebol e a política esportiva ou não. Era tudo o que sonhávamos para, quem sabe, modificar as coisas no nosso país. As nossas relações com os dirigentes se tornaram tão fortes e íntimas que em 83, após a conquista do título estadual e ainda no auge da comemoração e da euforia, resolvemos comemorar não somente entre nós—os jogadores—e sim na casa do presidente do clube. Ainda no vestiário em meio a dezenas de torcedores que tentavam de todas as formas exaltar aquela nossa conquista, decidimos fazer uma surpresa para ele: em vez de encaminhar o ônibus para o local onde estavam os nossos carros, fomos diretamente para a sua residência. Quando ele se deu conta do que estávamos fazendo, quase chegou às lágrimas. Estava sendo tratado como um dos nossos—o que realmente era—e não como um patrão que poderia ter sido cruel com nossos sonhos. Foi uma noite para lá de especial principalmente porque nada havia sido combinado com antecedência e o título fortalecera ainda mais o movimento que havíamos criado. Após este período, jamais tive a chance de viver uma realidade tão interessante qualquer que fosse o local de trabalho.
Descobertas italianas
Principalmente na Itália, aonde cheguei logo depois da frustrante derrota—no Congresso nacional brasileiro—da emenda constitucional que resgataria o direito de novamente podermos participar da escolha do Presidente da nossa jovem República. Este fato foi um choque para todos que estiveram envolvidos por inteiro na campanha que nos devolveria a cidadania e a liberdade que haviam nos tomado. Esta foi a principal razão porque resolvi aquiescer ao convite da Fiorentina. E lá fui eu conviver com outro povo, outra cultura, deixando temporariamente as lutas empreendidas até ali—como se não acreditasse mais nas transformações que gostaria que acontecessem em meu país. Pois é, saí do Brasil em meio a uma magnífica mobilização popular pela redemocratização e em pleno processo da democracia corintiana. Tínhamos no diálogo com o público uma injeção extraordinária de ânimo para enfrentarmos todas as dificuldades pela qual passávamos. Trazíamos para o nosso lado a coragem, a confiança e a ousadia da torcida corintiana. Com isso, participávamos ativamente da construção de uma sociedade diferente e todo dia estávamos aprendendo alguma coisa importante. A maior riqueza que se pode conquistar vivendo num mundo com este é a relação humana e suas derivações. Trocar isso por uma estrutura muito mais madura não foi nada fácil. É claro que eu estava curioso em conhecer os detalhes daquela civilização tão antiga quanto interessante, e por isso não me bastava entrar em campo e jogar futebol. Queria ter acesso ao modo de pensar e de agir do italiano. Descobrir que caminhos trilharam para chegar ao que são hoje. Mergulhar em sua cultura. A pressa nesta busca, pelo menos em meu país, sempre foi facilitada pelo meio do futebol. Afinal, são milhares de pessoas que passam ao seu lado a
cada período. Muito diferente da vida da maioria em que o número de indivíduos com que se convive é restrito. Infelizmente não foi o que eu encontrei na Itália. Sentia-me preso, controlado e extremamente limitado no contato com o público, pois a mídia não colaboravam para isto acontecer e tive que tentar buscalo de outras maneiras.
Convite irrecusável
Meu primeiro e definitivo conflito com o dono (ou seria Rei?) do time aconteceu porque declinei de um convite que me fez para participar de uma festa em seu palácio, por achar que aquilo havia ocorrido mais por gentileza e porque, com certeza, não seria o tipo de ambiente de que gosto. Como, imagino, não era comum este tipo de conduta, ficou um ar de ressentimento. Ressentimento este, que foi tão flagrante que acho que aquele convite, na verdade, era uma intimação. Coincidentemente, após alguns dias, fui convidado para um debate em uma das inúmeras "casas do povo" (centros políticos, sociais e esportivos que existem em cada região da cidade) e aceitei. O detalhe é que o evento ocorreria exatamente no mesmo dia e horário da tal festa do Conde. Aí o caldo entornou. Mas foi um grande barato participar de uma reunião tão politizada, em um país novo para mim, e com tanta mobilização popular. Eram aproximadamente cinco mil pessoas e o momento em que o cara de pau aqui falou pela primeira vez em italiano, apenas uns 60 dias depois de minha chegada. É claro que saiu um "portuliano" muito do mixuruca, mas que fui entendido, isto eu fui. Bem, a partir daquele instante começou uma verdadeira guerra entre os Pontellos e eu. Guerra, aliás, que eu já sabia quem ganharia. Eles no combate opressivo, eu
na liberdade e alegria de viver. Em outro canto aqui, eu falo do medo da felicidade. Acrescentaria o medo da independência e da liberdade. Em suma, Democracia Cristã e Partido Comunista Italiano, vulgo, lúcifer.
Poder do artista
E os caras ainda controlavam a mídia. Esta foi a grande dificuldade que encontrei na Itália: o sistema de comunicação existente no futebol de lá—muito mais arrogante que os meus patrões de então. Enquanto que no Brasil nós possuímos amplos canais de contato com o público de forma direta e livre, na Itália existia um deliberado impedimento para que isto não acontecesse. A intermediação entre o artista e a platéia se dava quase que exclusivamente através da mídia esportiva impressa, o mais das vezes em conluio com os donos do poder. Não sei se alguma coisa se modificou de lá para cá, mas creio ser improvável. Principalmente porque acredito que esta forma de se constituir deve-se a um princípio ideológico. Distanciando os jogadores de seu público se torna impossível qualquer tentativa de exercer o poder inerente a esta atividade. Afinal, quem possui maior capacidade de mobilização: os dirigentes ou os atletas? Nós, no Brasil, ainda possuímos esta liberdade, diria assim, porque quase a totalidade de nossos jogadores apresenta uma formação deficiente acompanhada de uma crônica falta de interesse pela estrutura sindical e por isso não exercem todas as possibilidades que uma atividade popular oferece. Quando ocorrer uma reviravolta educacional neste país, não tenho dúvidas que os canais de comunicação não serão mais disponibilizados com tanta facilidade—exatamente como no velho mundo.
Para exemplificar, na primeira oportunidade—em uma partida contra a Udinese de Zico—que tive de assistir a um jogo da Fiorentina, já que me encontrava lesionado, resolvi—depois de passar todo o primeiro tempo ao lado do alambrado e muito negar os convites para subir até a tribuna–, após o intervalo do jogo, alojarme junto à torcida mais jovem, alegre, barulhenta e animada: a chamada "curva"—o público que se coloca atrás dos gols onde os ingressos são mais populares. Era uma boa chance de me aproximar das pessoas que freqüentavam o estádio. Foi uma maravilha. Receberam-me de uma forma carinhosa e me aconchegaram bem no meio da galera. Aprendi os cânticos de estímulo, cantei, sorri e me diverti. Melhor ainda que nós vencemos. Ainda saboreando aquela experiência, surpreendi-me ao ver nos jornais do dia seguinte manchetes que diziam que havia tomado aquela surpreendente atitude a pedido dos dirigentes para acalmar o público, descontente com a campanha da equipe no campeonato. Era só o que faltava! Alguns meses mais tarde, outro conflito provocado pela manipulação. Estava tentando viabilizar uma solução para o problema provocado pela minha negativa em me transferir para a Ponte Preta de Campinas-BR já que os termos que haviam sido acordados anteriormente não foram respeitados pelos contratantes quando, em um determinado dia, parte dos cotidianos esportivos, como por encanto, apareceu com a mesma manchete estampada na capa tentando mostrar que eu desqualificara todos os cidadãos da cidade. Obviamente que jamais faria tamanho absurdo, até porque na véspera não dera nenhuma entrevista. Mas não havia como responder àquela agressão, pois os microfones—desaparecidos—só se preocupavam com o interesse dos chefes de equipe. Como havia um jogo amistoso em Viareggio naquela tarde, desloquei-me até a cidade vizinha para, acompanhando a partida, negar tudo o que havia sido publicado pelos jornais e afirmar a minha posição de respeito ao povo que me recebeu com muito carinho e que tentou ajudar de todas as formas a minha aventura italiana. Surpresa, metade da torcida queria me ver morto enquanto a outra metade me protegia. Felizmente, porque senão teria sido linchado. Talvez tenha
sido exatamente esta a pretensão dos idealizadores do fato: uma chacina, onde eu seria o alvo.
Os atuais administradores
Percebe-se então que o encaminhamento das questões relativas ao futebol tomam formas distintas de acordo com a visão da classe dirigente. Mas, de qualquer forma, foi muito interessante ter vivido situações tão diferentes até para podermos valorizar com realismo cada uma delas. Quando, no ano seguinte, voltei ao Brasil, as coisas já começavam a tomar outro rumo, pois o negócio futebol estava se tornando grande o suficiente para chamar a atenção dos que anteriormente o viam apenas como uma forma de entretenimento. Se até então poucas empresas se dignavam a realizar projetos de marketing ligados ao futebol pelos mais variados motivos, neste final dos anos oitenta já se percebia uma maior movimentação de recursos e geração de riquezas. E pela primeira vez o esporte é contemplado na carta constitucional do nosso país. Com o final melancólico da ditadura militar, instituiu-se uma assembléia nacional constituinte com a pretensão não só de revogar tudo de ruim que fora sido imposto pelo antigo regime como também de modernizar a legislação e adequá-la à nova realidade. Foi motivo de jubilo, para aqueles que militam no desporto nacional, a justa valorização do esporte—através de sua especificação dentro do texto constituinte. No entanto, passou despercebido pela maioria dos congressistas, empenhados no estudo e elaboração da nova
carta, que a forma como foi detalhada a importância deste segmento dentro do contexto social brasileiro abria várias frentes de manipulação na administração das entidades esportivas. É que no artigo relacionado ao esporte especificou-se que as estruturas esportivas teriam plena liberdade de organização. A interpretação prática que foi dada a este termo por parte dos nossos dirigentes foi a pior possível e até hoje causa grandes estragos na gestão do nosso esporte e em particular no futebol. Muitos deles se enraizaram no poder desde então. Manipulando o colégio eleitoral de suas entidades de classe ou de administração do desporto, eles alteraram os regimentos das estruturas que geriam para que pudessem permanecer o maior tempo possível nos cargos que já ocupavam. O presidente da Confederação, por exemplo, está entronizado desde o final dos anos oitenta. São mais de quinze anos de poder absoluto. Nas federações e nos clubes não há muita diferença. E toda exagerada concentração de poder produz, geralmente, distorções de conduta. Pudemos tomar conhecimento em detalhes de várias destas distorções através das investigações levadas a cabo por uma comissão parlamentar de inquérito instalada na câmara dos deputados no final do século passado e impressas em um livro de autoria dos senhores deputados Aldo Rebelo e Sílvio Torres—presidente e relator desta comissão—publicado pela editora Casa Amarela. Quanto à CBF (Confederação Brasileira de Futebol) verificou-se que administração da entidade vinha sendo gerida de forma deliberadamente caótica. Ainda que a entrada de recursos tenha se multiplicado entre 1997 e 2000 (período alvo da investigação) passando de pouco mais de 18 milhões de reais para quase 80 milhões, isso não foi suficiente para evitar que ao final de 2000 houvesse um passivo circulante de 55 milhões mais um prejuízo acumulado de 25 milhões de reais. Boa parte disso proveniente de empréstimos contraídos junto a instituições financeiras externas pagando juros exagerados mesmo para agiotagem pura—chegou a pagar 52% ao ano em dólares e muitas vezes de forma adiantada. De acordo com a Folha de São Paulo (jornal de larga circulação
nacional) de 20/04/2001 foram pagos, a título de juros e multas, além da desvalorização cambial, cerca de 11 milhões de dólares em menos de dois anos e meio. É estranho que um individuo que adquirira nesta época cinco apartamentos, três iates, vários carros das principais montadores do planeta, uma mansão em Búzios (conhecida estância marítima), outra em Petrópolis e mais uma em Miami conforme o programa Globo Repórter tornou público, possa ser tão incompetente com o gerenciamento de uma entidade esportiva enquanto na vida privada têm resultados tão contundentes. Deve possuir uma péssima assessoria na administração esportiva. Nos clubes, não é diferente. Os recursos que chegam a estas instituições—geralmente fruto de transações envolvendo jogadores—fazem um percurso tortuoso para atingir o seu destino. Há suspeitas gravíssimas em quase todas as transferências de jogadores para o exterior. Talvez nem 25% do que é desembolsado pelos compradores chega aos cofres dos clubes. Muita gente envolvida participa da divisão destes recursos: uma parte (pequena) vai para o atleta, outras são divididas entre os empresários dos jogadores e dos clubes e muitas vezes com os dirigentes que passam assim a assumir que aquele patrimônio também lhes pertence. O que é um grande absurdo já que as estruturas esportivas brasileiras não são empresas constituídas. Como esta é a grande fonte de recursos dos clubes, com esta exagerada sangria, gradativamente eles vão se encaminhando para a inadimplência. Praticamente todos os clubes do país encontram-se nesta situação e só não fecharam suas portas por culpa da complacência do Estado que trata com deferência mais que especial estas instituições quanto aos créditos que possui: fiscais e previdenciários.
Modelo esdrúxulo de gestão
Mas o pior é que além deste tipo de comportamento, digamos, duvidoso dos nossos dirigentes, nós temos uma crônica incapacidade de privilegiar o mérito na ocupação das funções profissionais. Podemos imaginar esta realidade fazendo uma parábola como se o clube fosse uma grande empresa nacional. O presidente desta empresa, escolhido por uma assembléia de acionistas, é empossado com pompa prometendo uma administração moderna e transparente onde a eficiência deve ser a tônica de todo o mandato. É característica desta relação, que as ações de quem recebe esta missão raramente são questionadas. Como diretor presidente ele deveria estar preocupado com o planejamento a médio e longo prazo dos objetivos da organização. Como sabe que seus antecessores nunca deram qualquer importância a este detalhe, declina de tentar avaliar as dificuldades que teria pela frente. O que realmente pretendia era chegar até aquele posto e havia conseguido. Dali em diante tudo, espera, correria tranqüilamente como sempre. Escolhe para alguns cargos pessoas que nunca haviam trabalhado naquele segmento, por amizade, respeito ou companheirismo, jamais se preocupando com a qualidade do serviço que eles poderiam oferecer. Em outro posto chave nem se deu ao trabalho de indicar um nome já que tinha vários conhecidos no ramo e caso houvesse necessidade, eventualmente pediria uma ajuda sem compromisso. Na parte operacional escolheu seus supervisores por indicação de terceiros ou de vizinhos sem ao menos avaliar suas capacidades ou se estavam ou não atualizados para levar adiante o sistema de produção. Por qualquer motivo não simpatizava com um dos componentes que há
muito fazia parte do corpo de funcionários e apesar de ser o de maior produtividade, despediu-o sumariamente. Ele mesmo, acumulando funções em uma outra empresa em que tinha interesses, raramente aparecia em seu escritório, delegando poderes a um auxiliar direto a quem devia favores. Este diretor, que deveria ser a pessoa mais importante da companhia, não tinha capacitação para a posição porque também sempre houvera tido contato com este ramo de atividade e não possuía conhecimentos que lhe permitissem dialogar com os técnicos responsáveis pelos diversos departamentos. Um belo dia um importante empregado deixa a empresa porque esta havia se esquecido de oferecer-lhe uma proposta de renovação de contrato. Apesar de ter muito interesse em preservar este funcionário, nega-se a apresentar uma defesa—tudo isto por não possuir um advogado na diretoria—quando acionado pela justiça do trabalho e recorre ao sindicato patronal. Este, por sua vez, absurdamente imagina que suas deliberações valem mais que a própria justiça, o que é uma tremenda infantilidade. Enfim, não houve como manter esta peça fundamental. Só lhe resta pedir que as empresas do mesmo segmento não contratem o indivíduo que ousou defender seus interesses, até porque há meses não recebia seu salário porque o balanço econômico-financeiro sempre esteve no vermelho.
Organograma compatível
Este é um exemplo de como a nossa estrutura é administrada quando, no mínimo, deveria haver nos postos chaves indivíduos com capacitação e experiência neste ramo de negócios. Como no caso do diretor técnico. Para mim, este individuo deveria ter uma formação ampla o suficiente para poder dialogar com todos os profissionais da área técnica. Isto seria de fundamental importância para aperfeiçoar o desempenho dos vários segmentos operacionais que compõe esta estrutura. Obviamente que, idealmente, ele nunca fez parte de qualquer estrutura do futebol brasileiro porque nunca houve quem se preocupasse em organizar convenientemente as relações entre os departamentos. Portanto vejamos: quais são os profissionais que fazem parte de uma comissão técnica contemplando a infra-estrutura necessária para explorar ao máximo o potencial de nossos atletas e que são responsáveis por determinadas áreas de atuação? Técnicos de futebol – parte técnica e tática, eventualmente com alguns auxiliares especializados em determinadas funções como o treinador de goleiros, de defesa, de ataque (algo que também nos falta). Preparadores físicos – adequada preparação física dos atletas. Aqui também poderíamos ter especialistas em trabalho aeróbio e anaeróbio. Nutrólogo ou nutricionista – planejamento nutricional; ortopedista – diagnóstico de lesões e do planejamento do tratamento; fisioterapeuta – tratamento de lesões; psicólogo – proporcionar melhorias na capacidade de controle emocional no trato das pressões inerentes à profissão, viabilizar uma relação positiva entre os componentes do grupo de trabalho expondo claramente alguns sentimentos que podem provocar discórdias como inveja e ciúme, além de muitas outras questões fundamentais. Fisiologista – avaliação da capacidade física, detecção de fragilidades orgânicas e/ou ocasionais, determinação do tipo de treinamento físico a se realizar para superar deficiências, etc. Eventualmente necessitemos aqui especialistas também, como em Biomecânica. Clínico geral – odontologista – massagistas. Como vemos, teríamos uma equipe qualificada para resultados
excelentes, mas é claro que suas capacidades e ações deveriam ser indicadas e avaliadas por alguém que tenha conhecimentos nestas várias especialidades e possa ter uma linguagem adequada para cada profissional, estabelecendo assim uma relação mais próxima entre segmentos de formação tão diferentes, como se fosse numa linha de montagem. Somar conhecimentos é fundamental para se encontrar a fórmula ideal que irá gerar dividendos muito maiores do que podemos conseguir com a estrutura atual. Mas não se pode esperar muito se colocarmos no lugar deste diretor técnico, coordenador, gerente, supervisor ou seja lá o nome que dermos, uma pessoa não qualificada para a função. E são poucos os que podem exercê-la.
LIDERANÇA E DEMOCRACIA CORINTIANA
Quem é o líder?
Quando pensamos em liderança, temos que ter claro que existem vários ângulos a serem analisados. O primeiro e mais importante é que um líder não se impõe exclusivamente por sua capacitação. Ele antes de tudo precisa adquirir credibilidade frente a seus liderados. Para tanto, ele deve demonstrar uma postura que deva ser entendida com clareza e respeite os valores éticos além de manter consistência em relação ao seu comportamento. Os princípios e os valores que regem os seus passos têm que ser absolutamente claros para os demais. O líder deve estar comprometido com seus liderados. Deve carregar a bandeira do espírito coletivo quaisquer que sejam as dificuldades e/ou riscos. O processo de instalação de uma liderança em determinada sociedade é lento e gradual. É fundamental que as pessoas se conheçam em profundidade por isso uma convivência consistente se faz necessária para que o líder apareça. O líder deve assumir uma grande responsabilidade, seja ela intelectual, de competência ou política. No futebol, há alguns aspectos que privilegiam o aparecimento do líder quase por necessidade. Este é um esporte extremamente popular o que faz com que uma infinidade de pessoas interfira no trabalho e no desempenho dos atletas o que implica em grandes e cotidianas cobranças que acabam por tornar frágeis os seres humanos que dele
participam. Com isto, a carência por indivíduos mais preparados para enfrentar estes desafios é grande. Quando um jogador possui uma estrutura emocional e psicológica forte o suficiente para não se deixar influenciar pelo meio, passa a servir de referência para os demais companheiros principalmente nas horas difíceis. Este é o primeiro e mais importante passo para que se instale uma liderança. Como, no Brasil, as pessoas que participam deste meio são pouco preparadas para enfrentar com naturalidade as dificuldades inerentes a esta atividade, por falta de formação e de entendimento de sua importância na sociedade em que vivem os que se destacam se transformam quase que naturalmente em elementos de segurança para os demais. Os lideres são pessoas que tem muita confiança em si e por isso são ousados e criativos e gostam de quebrar regras e de correr riscos, mas também tem que ser moderados e evitar que possam por tudo a perder, pois a sua responsabilidade para com os companheiros está acima de qualquer outra coisa. Devem ser também extremamente competentes na estratégia para ultrapassar possíveis obstáculos. Os lideres não tem medo de errar e por isso são muito autoconfiantes. Eles criam condições de liberdade para que possam tomar iniciativa em qualquer questão e devem ter discernimento de cada passos tomado. Adoram o que fazem além de serem intuitivos e analíticos.
Liderança Política
Além da índole que nos empurra ao posto de liderança, temos que reconhecer que alguns aspectos se mostram extremamente relevantes neste meio. Quanto mais um indivíduo se destaca da maioria mais chances de se tornar líder ele possui. No meu caso, acredito, uma somatória de fatores cumulativos me colocaram nesta posição sem que eu pudesse contrastar com esta realidade. O fato de ter feito Medicina já me fazia diferente frente à categoria. Poucos jogadores no Brasil ter o curso superior, pois quase nenhum consegue conciliar os seus estudos com a atividade profissional neste esporte ou mesmo não se interessam. São desprevenidos, diria. O curso médico então, é quase impossível, pois as agendas não são nada favoráveis. Só consegui estudar e jogar concomitantemente por quatro anos porque consegui criar um regime especial que favorecia esta possibilidade. Quase nunca podia treinar junto dos meus companheiros e o fazia às vezes à noite e sozinho. Esta particularidade—que poderia ter me impedido de jogar futebol caso incomodasse a maior parte dos meus companheiros—produziu uma reação muito diferente: a maioria dos meus colegas, de alguma forma, se tornou cúmplice da minha empreitada e tentou colaborar de todas as maneiras possíveis. Valorizavam as minhas posições quanto à importância dos estudos na formação dos indivíduos mesmo que quase nenhum tenha se mexido para voltar a estudar. Talvez até por esta causa eles sentissem um misto de curiosidade e constrangimento que nos aproximava com facilidade. Outra característica importante é que eu era originário de uma família de classe média ao contrário da maioria dos outros jogadores que vinha de classes sociais menos favorecidas. Como sempre pouco me preocupei com isso e em nada valorizo estas diferenças sociais, tornei-me rapidamente em um amigo de todos. Além, é claro, de utilizar sem tréguas a minha capacidade de agregar seres humanos. E até em função da minha história pregressa, encontramos outra faceta da minha personalidade que interferiu decisivamente na minha inserção na liderança da equipe: a liberdade e independência com que eu me relacionava com os dirigentes o que inevitavelmente me colocava como porta voz do grupo de jogadores.
A luta por melhores condições de trabalho e o questionamento obsessivo das posições mais tradicionais foram batalhas que enfrentei a vida inteira e isto vinha de encontro às expectativas de quase todos os companheiros. É claro que o que me permitia enfrentar estas batalhas era tudo o que havia construído—como a graduação em medicina e a liberdade conquistada por isso. Então, todos estes parâmetros somados ofereciam uma condição única e totalmente diferente do que normalmente encontramos neste meio.
Liderança Econômica
Outras formas de liderança são muito freqüentes no futebol e tentam se contrapor às lideranças naturais. A que mais se vê é aquela que tende a ser criada a partir da diferença salarial—que eu chamaria de liderança econômica. A realidade do futebol cria várias classes de jogadores dentro da mesma equipe, alguns são muito bem remunerados enquanto a maioria se encontra em patamares inferiores. Com isso, alguns destes mais bem dotados de valorização podem utilizar este atributo como forma de ascendência sobre os demais. Como só este fato representa muito pouco para uma representação, este pretenso líder busca—através de sua maior proximidade com os patrões—conquistar algumas melhorias para os que pouco valem naquela estrutura. Como um aumento na
premiação por vitória, por exemplo. Apesar de muitas vezes realmente atingir o seu objetivo, este tipo de postura provoca muitas reações, pois fica claro que estas conquistas não melhoram a vida dos quadros menos favorecidos, mas sim e principalmente a dos que já estão em um patamar salarial acima da média—incluindo-se aí o dito cujo. Além do que, os reclamos partem de questões individuais em detrimento dos valores coletivos. Na verdade este tipo de postura ao invés de provocar uma maior unidade naquela sociedade a divide, pois estimula a que outras lideranças de mesma origem se criem com o mesmo grau de poder—desde que existam outros indivíduos na mesma posição salarial. Assim podemos imaginar que teremos aqui vários guetos sem ascendência sobre os demais o que destrói qualquer possibilidade coletiva. É necessário que se tenha maioria absoluta, pois sem a mesma não existe liderança.
Democracia Corintiana
Um dos maiores desafios que pudemos enfrentar em nossa vida profissional foi a chamada "democracia corintiana". Este movimento nasceu de uma constatação nada interessante, ao menos para minhas convicções: que os atletas de futebol do Brasil não possuem o mínimo de consciência da sua importância social, que não entendem que podem representar muito para uma nação jovem e em formação como a nossa e que não assumem as suas responsabilidades frente a sociedade em que vivem. O primeiro passo foi o de provocar a
discussão acerca do que poderia ser feito e como poderia ser realizado. Que tipo de mudança gostaríamos de executar para melhorar as nossas relações de trabalho e como poderíamos estimular a participação de todos nas decisões coletivas? Era necessário que a maioria reconhecesse que o poder no futebol está em seu grupo de atletas—que o poder era nosso e só nós poderíamos exercê-lo se tivéssemos consciência disso. Este poder na maior parte das vezes nas estruturas futebolísticas é passível de interferências, limitações ou mesmo de castração, mas não deixa de existir. Ainda que não haja o exercício do mesmo. Tornando-o palpável ao nosso grupo, tínhamos a chance de tomá-lo nas mãos. É inacreditável que um indivíduo que possui popularidade (poder político) e excelente salário (poder econômico) não exerça estas atribuições. Pergunte a um político de carreira com quem ele gostaria de dividir algum tipo de poder adquirido: o jogador de futebol seria a resposta óbvia. Mas, infelizmente, o jogador não reconhece este poder que tem em mãos e, pior, isola-se em guetos muito comuns aos que se sentem marginalizados pela sociedade. É que ele, por possuir uma formação nula ou deficiente—aqui no nosso contexto–, sente-se desqualificado para conviver com naturalidade com a sociedade mais educada, de maior conhecimento e com maior informação. E é esta realidade que interessa aos gestores do futebol brasileiro preservar. Fundamentalmente para que os atletas não reconheçam o peso que possuem no sistema e não tentem modifica-lo. O que poderia colocar em risco todos os que lá se instalaram para usufruir suas benesses sem necessariamente ter capacitação para tal. Quanto mais ignorantes mais facilmente estas pessoas são controladas. A ignorância é um belo instrumento de opressão. Pois é, um dos nossos maiores desafios no início da democracia corintiana era de levar ao conhecimento de todos, o valor da nossa força. Coletiva, se possível; já que éramos uma ilha progressista no universo reacionário do futebol brasileiro e isto nos tornava objeto— e muitas vezes o único foco—de toda a reação conservadora. E esta veio como um furacão tentando nos intimidar e destruir. Naquele
momento era absolutamente fundamental que eu me colocasse à frente dos companheiros menos articulados para "protegê-los" do possível massacre. Até porque a discussão já passara da esfera esportiva para a política—o país ainda vivia uma ditadura militar—e muitos ainda não tinham elementos filosóficos ou ideológicos para defender a nova realidade—puro papel de liderança. Você, correndo todos os riscos e enfrentando todos os adversários, adquire uma respeitabilidade ímpar frente aos seus companheiros o que o impele a buscar novas forças para futuras batalhas. E é este ciclo energético que fortalece esta relação. O nosso envolvimento político agregou do nosso lado várias correntes que, como nós, lutavam pela redemocratização do nosso país. A associação entre a democracia corintiana e o movimento sindical que eclodira no ABC paulista (grande São Paulo) anos antes, era clara. Por terem sido ações que nasceram em segmentos bastante populares adquiriram uma força peculiar. O grande líder das lutas sindicais foi Lula que mais tarde viria a ser eleito presidente do país. Da organização sindical para a formação de um partido político (o partido dos trabalhadores) foi um pulo. A primeira eleição que o PT participou—ainda durante o regime militar—ocorreu em 82 e Lula foi candidato a governador. Sem muita estrutura e sem recursos financeiros, àquela época, criava-se todo tipo de promoção para levantar dinheiro para realizar a campanha. Nós também fizemos a nossa parte. Interessante é que toda a razão da grande crise que se abateu sobre o governo do PT iniciado em 2003 é exatamente a origem destes recursos destinados a custear os gastos de campanha. Como não temos ainda o financiamento público das campanhas eleitorais, criase um ambiente propício para a corrupção e o tráfico de influência. O dinheiro que é doado para esta finalidade, em tese, deve voltar para a origem. Ainda que fruto de desvios fiscais e tributários. A falta de coragem de enfrentar esta realidade instalada de há muito em nosso país foi o grande defeito do partido e acabou por destruir o sonho de toda uma geração de brasileiros. Mas isso é outra história. Há vinte anos atrás não havia dinheiro nem
para o café e qualquer ajuda era recebida com festa. E a nossa colaboração foi muito divertida.
Evento para a campanha de Lula
Havíamos jogado no sábado à noite em Rio Preto, cidade que se localiza a quase 500 km da capital paulista, e só conseguimos chegar a São Paulo quase de manhã. Menos mal que tínhamos vencido. Todos nós descemos correndo do mosqueteiro – imponente apelido do nosso ônibus –, pois o grande compromisso se avizinhava. Nem ao menos fizemos as despedidas de costume. Voando, fomos cada um para a própria casa descansar um pouco. Antes das dez, já estávamos de volta. Para mais um jogo, vejam vocês. Mas era uma festa antes de tudo. No vestiário topamos com boa parte da inteligência nacional. O campo do Corinthians, naquele momento, mais parecia um encontro de deuses. O Olimpo, para me expressar melhor—Zeus ficaria orgulhoso. Depois de anos calados à força, aquele acanhado antigo estádio estava recebendo a nata da resistência ao regime que nos amordaçava. O motivo, a bandeira, o hino, era a campanha do PT. A primeira aparição eleitoral do novo partido político nascido ali
pertinho, no ABC, e fruto da luta dos metalúrgicos. Ainda era um sonho, mas confiança era o que mais víamos nas faces de todos naquela linda manhã de domingo. Atletas corintianos, atores, cantores, músicos, produtores e diretores das mais diversas atividades artísticas se reuniram ali naquele apertado recinto para através da bola, nossa outra paixão, irmanar nossas convicções. Difícil foi sair a escalação dos dois times. Decidiu-se por um sorteio dirigido. Afinal, todos os artistas, como Gonzaguinha ou Toquinho, não poderiam estar do mesmo lado. A platéia, apesar de pequena, estava em êxtase. Como é interessante notar o quanto se multiplicou nas décadas seguintes. Muito mais rápido do que poderíamos imaginar. Depois do jogo, nos encaminhamos para o ginásio de esportes onde nos aguardava um churrasco regado a muito bom humor e alegria. Como sempre, aliás. Passamos a tarde a tagarelar, esparramados pelo chão do restaurante improvisado. De vez em quando pintava um violão a entoar cantigas dos presentes e, emocionando a todos, dos ausentes. "Apesar de você amanhã há de ser outro dia" de Chico Buarque disputava com "Caminhando e cantando e seguindo a canção braços dados armados amados ou não" de Geraldo Vandré. Ou então: "diz lá pra Dina que eu volto, que seu guri não fugiu" de Gonzaguinha. Todos eles de alguma forma censurados e agredidos pela ditadura. Era um orgasmo de sentimentos e de brasilidade. Fernando Faro, diretor indicado e único, creio, capaz de por ordem no show que aconteceria mais à noite, era só nervosismo. Falava com um. Chamava outro. Anotava tudo num caderno bem surrado e vez ou outra abria o sorriso. Uma hora aproximou-se de mim e perguntou: "ô baixo (olhei-o com espanto), você viu se o Tim Maia confirmou a presença?" Não deu tempo de responder por que naquele instante os portões (quase que eu escrevo porões lembrando da galera que sofreu na mão dos insensíveis comandos militares) do ginásio estavam sendo abertos ao público e tínhamos que nos encaminhar para os camarins. E nada, ainda, do Tim. Casa cheia! Não me lembro de ter visto aquele gigante cheio. Talvez na época de Wlamir, Amaury e Rosa Branca do melhor time de
basquete que o país já teve e que, na seleção, chegaram a ser campeões mundiais. Mas eu, recém-corintiano, jamais havia tido o privilégio. Foi emocionante. Na coxia tropeçava num mundo de gente que eu admirava. Os olhares estavam anos-luz do fato. É que tinha um cheiro de humanidade que impregnava a todos. Até que o Tim Maia apareceu. Finalmente. Logo ele que possuía a fama de sempre faltar aos shows. Um dia como aquele só alguns anos depois, no Anhangabaú, na campanha pelas eleições para presidente, que reuniu o mesmo povo e mais um monte de agregados. A cantoria foi uma apoteose. Nossos melhores músicos e grandes cabeças entoando loas a um cara que nascido no nordeste e passageiro de pau de arara se tornara, então, nossa esperança de um Brasil mais justo.
O voto de Minerva
Um exemplo de como as coisas se processavam no interior do nosso movimento aconteceu com o goleiro Solito que foi nosso companheiro naquele período. Ele e o irmão. Poderíamos considerar quase um caso de nepotismo. Mais ou menos como a história do Pelé com seu irmão Zoca. De qualquer forma é um excelente caráter e foi um grande goleiro. Mas naquele ano de 83 ele estava na reserva. Foi quando protagonizou um dos momentos mais marcantes daquele movimento. Era véspera do escrutínio mais importante da história do Corinthians. Afinal estava em jogo a preservação de um novo modo de gerir o futebol com ativa participação dos atletas,
democratização das decisões, liberdade e responsabilidade. Para vencermos era necessário conquistar a maioria dos votos dos sócios e eleger a metade do conselho. Os conselheiros vitalícios (a outra metade) eram, na sua maioria, de oposição. A parada era dura. Nosso adversário—Vicente Matheus, de novo—era uma lenda viva no clube e raramente havia sido derrotado. Quase todos os jogadores eram também sócios e isso nos dava uma dupla responsabilidade. Wladimir e Zé Maria se candidataram. Houve muita especulação sobre a minha presença na lista de candidatos, mas não podia abrir mão de minhas convicções—rejeitava o método indireto de eleições. Sempre lutei pelo voto direto e continuo acreditando que este seja o melhor meio de avaliação democrática. Assim, respeita-se a alternância de poder tão necessária; principalmente naqueles tempos de ditadura militar. Mas não me afastei da luta e usei todas as armas que possuía. Era minha alma que estava envolvida naquele processo. Decidi e tornei público que se por acaso perdêssemos nunca mais jogaria no clube. Era definitivo. Por uma coincidência do destino foi por uma razão semelhante que acabei indo para a Itália um ano depois: a derrota da proposta de emenda constitucional que restituía o direito de escolhermos o presidente do Brasil. Quando se iniciou o processo eleitoral no Corinthians avaliou-se que a disputa seria muito equilibrada. Todo voto seria fundamental para aumentar as chances de vitória. Como sempre nestas condições, até os mais velhos e doentes eram contemplados com visitas na tentativa de atraí-los para um lado ou para o outro. A polêmica ultrapassou os portões do clube. Era uma instituição democrática que estava em jogo. As forças reacionárias entraram para valer. Às nossas cores se somaram todos os setores progressistas da sociedade. Sindicatos, partidos de esquerda, formadores de opinião e muitos mais. O dia a dia do clube estava pegando fogo. Nunca houve uma eleição para presidente de clube esportivo com o grau de politização daquela disputa. Chegou a semana decisiva. No dia da eleição, um domingo, nós tínhamos um jogo no Rio de Janeiro. Durante a semana promovemos uma grande discussão acerca da data que deveríamos viajar para o jogo no Maracanã. Era de interesse dos mais
envolvidos na questão eleitoral que ficássemos em São Paulo até o último momento para que pudéssemos votar e fazer campanha na boca da urna. Assim, teríamos tempo suficiente para realizar as duas missões. Outros estavam reticentes. Aproximadamente a metade dos companheiros não queria ou tinha medo de enfrentar a questão de frente e arriscar-se a perder a partida e ser criticado por isso. Como se o fato de viajarmos no dia anterior ao jogo fosse prerrogativa de maiores possibilidades de vitória. Percebemos a indefinição do quadro e passamos a semana tentando convencer-los de que a prioridade era a disputa eleitoral que, afinal, definiria o nosso futuro. Resolvemos, como sempre, levar a questão a voto. Dois dias antes da partida, com o estádio cheio de torcedores que ali estavam para assistir o treino e viver o clima das eleições, nos reunimos no meio do campo. Atletas, comissão técnica, massagistas, roupeiros e diretores se reuniam mais uma vez para decidir. Que maravilha! Um a um, todos nós fomos colocando nossos votos e as razões para a escolha. Nenhuma posição se destacava. Até que chegamos ao último sufrágio, empatados. E o último era ele, Solito. Adivinhem a cara do nosso companheiro quando todos se voltaram para ele. Acuado, ele sussurrou: sábado! Foi a mais equilibrada disputa que tivemos e a derrota na votação, a mais bela. Até porque vencemos as eleições do clube.
Festa de despedida
Quase todos os nossos momentos naquele período foram de intensa participação e muita alegria. Muitas festas também. Inclusive na minha despedida quando da partida para a Itália. Foi um jogo muito especial. O amistoso, marcado há tempos, calhou de ser em Juazeiro do Norte, em pleno Cariri no sertão do Ceará estado natal do meu pai e terra de padre Cícero, um mito religioso dos nordestinos brasileiros. Terra que haveria de nos ofertar uma oportunidade única de terminar aquele período com muita festa e alegria como sempre encontráramos naqueles anos da democracia corintiana. Mesmo que nunca tenha sido um grande devoto de qualquer santo em especial devo confessar que eles jamais me deixaram na mão. Nasci em Belém, cidade com o mesmo nome da que nasceu Jesus Cristo e que confundiu um determinado colega que, certa vez, ao chegar por lá se esparramou em elogios à origem do filho de Deus – só faltava essa! Havia ouvido falar muito de Crato e de Juazeiro. Meu pai sempre teve muita atração por aquele canto sofrido e o fato de estarmos nos dirigindo para lá me causou uma euforia rara em situações como aquela. Tomamos o avião junto com nossos adversários naquela festa: a equipe do Vasco da Gama do rio de Janeiro. As diferenças já se fizeram sentir ao primeiro contato entre os grupos. Enquanto nós estávamos à paisana, eles portavam uma toga tipo dos anos
cinqüenta. Fomos todos nós para o fundo da aeronave para ficarmos perto do serviço de bordo, isto é, da cerveja. Normalmente tínhamos uma conduta mais conservadora quando íamos participar de partidas oficiais, mas ali isto não cabia, pois, mais que tudo, aquela era uma situação de despedida e queríamos mesmo era farrear. E assim foi durante todo o tempo de vôo. Muita batucada, sorrisos e lembranças. Ao chegar ao nosso destino uma multidão nos aguardava. Parecia que todos da região haviam ido às ruas para nos esperar. Um ônibus nos pegou em plena pista de pouso, já que não poderíamos chamar aquilo exatamente de aeroporto, e fizemos um, na verdade, desfile pela cidade. Acomodamo-nos em um hotel bastante confortável e como não podíamos inventar de sair para conhecer a região por culpa da imensa mobilização pelo jogo resolvemos permanecer por ali mesmo. Aquela recepção e o carinho que nos ofereceram mexeram comigo e me emocionei muito. Enquanto tomava meu banho imaginava uma forma de continuar a festa iniciada na viagem, mas nada me vinha à mente. Ao descer para o saguão, um grupo já havia se instalado na varanda do prédio, no segundo andar, vizinho ao salão de jantar. Neste, os vascaínos estavam terminando seu jantar. Findo, se dirigiram aos seus quartos sem nem mesmo um pouco de conversa fiada. Parecia até que eles encaravam aquela partida como oficial. Para quem acabava de perder a final de um torneio brasileiro, seria muita pretensão. Nós não. Pouco a pouco todos foram se aproximando. Um tamborim aqui. Um cavaquinho acolá. Uma piada solta no ar. Várias gargalhadas soando. E o tempo passando. Junto com nosso grupo estava toda a galera da imprensa. Velhos companheiros de luta e, agora, de festa. Não se fazem mais jornalistas como então! Passava das cinco da matina quando os primeiros se lembraram de dormir. Um a um foram se retirando como num triste ritual. A festança tinha sido da pesada e todos, sem exceção, jamais se esqueceriam. Principalmente os jogadores do Vasco que a tudo tiveram que ouvir no distante mundo de seus quartos. Meio sonolentos e muitos bocejando, nos encontramos de novo para
um rápido lanche antes do jogo. E fomos para o estádio. Casa cheia. Uma verdadeira explosão de gritos e fogos se instalou naquele espremido campo de futebol quando as duas equipes entraram no gramado. Percebíamos certo ar de superioridade nos rostos dos vascaínos. Talvez devido ao fuzuê da noite anterior. Porém, nós sempre sabíamos de nossas capacidades e aquilo não iria atrapalhar a grande despedida. A vitória era um compromisso para todos nós— encerramento com chave de ouro. E assim se fez. Em pouco mais de meia hora de partida já havíamos decidido o jogo: 3X0. O tal do toque de bola destruiu o adversário. Quem parecia que não havia dormido bem, eram eles. Que até hoje não entenderam o que aconteceu. Foram atropelados! Faltou-lhes a alegria que a liberdade oferece e que tínhamos de sobra. Coisa rara neste tipo de mundo. Este é um belo exemplo de como a paz espiritual e a alegria podem sobrepujar e muito a sisudez e de como o bem estar mental sempre suplanta o físico.
Liderança emocional
A liderança exercida dentro de campo é um capítulo à parte. Como no futebol vivemos uma realidade em que o público participa ativamente do nosso trabalho—no dia a dia, nos treinamentos, nos jogos–, é necessário um grande controle emocional para que se possa realizar esta atividade sem que esta influência atrapalhe o desempenho. E esta não é uma qualidade inata à maioria. A maior parte dos jogadores de futebol—principalmente no Brasil porque, em função da nossa cultura, somos extremamente sensíveis aos estímulos externos e por eles facilmente atacados—não possui estrutura para suportar a carga de pressão que existe neste meio. Não é por outra razão que grandes jogadores, tecnicamente falando, não conseguem obter na seleção brasileira o mesmo sucesso que em seus clubes. Tudo por culpa de um grau maior de exigência. Assim, são poucos os que realmente estão preparados para tamanho desafio. Quando de um espetáculo com grande apelo popular em que o público aflui em massa, seria fundamental que todos os jogadores estivessem preparados para o desafio. Mesmo que qualquer insegurança sempre faça parte dos preparativos para uma partida, deveria haver uma súbita reviravolta emocional logo no início do prélio. Infelizmente muitos não conseguem obter este equilíbrio e são prejudicados em seus desempenhos ao menos nos primeiros instantes de contato com o público. Algum tempo após, a grande maioria se acalma de acordo com o desenrolar do jogo: se este está fácil e tranqüilo é razoável supor que esta sensação se faça presente em todos os jogadores, mas se há uma grande dificuldade muitos não conseguem jogar e se escondem dentro de sua incompetência psicológica. Aqui é que entra a importância do líder emocional. A sua presença deve ser a mais atuante possível não só na questão técnica, mas principalmente no auxílio aos demais: Conversando, potencializando a confiança que o time deposita na capacidade dele e tentando minimizar a pressão que recebem das arquibancadas. Nos momentos capitais, nada de transferir responsabilidades. É fundamental que o
líder assuma todas as grandes decisões. Certa vez, em um jogo decisivo e contra o maior rival—um Corinthians e Palmeiras na semifinal de um torneio–, o arbitrou assinalou uma penalidade máxima para o nosso time a menos de cinco minutos do final—e estávamos perdendo a partida. Era a chance de empatarmos. Imediatamente peguei a bola e coloquei-a debaixo do braço definindo assim que aquela situação seria por mim enfrentada, protegendo assim todos os companheiros. Na hora da cobrança da penalidade, desviei momentaneamente o olhar para trás e pasmem: todos os jogadores do meu time estavam de costas para o local onde eu me encontrava de frente para o goleiro adversário, segundos antes do toque final. Estavam absolutamente abalados; como é que poderiam assumir tamanha responsabilidade? Jamais. Eu também estava sentindo o peso nas costas, mas nunca poderia recuar. Se acontecesse alguma fatalidade e perdesse o pênalti, seria mais fácil eu assumir a culpa que qualquer um dos meus companheiros. Era mais preparado para as reações negativas que poderiam advir deste fato.
Liderança Técnica
Além disso, a liderança que poderíamos chamar de "técnica" é a que mais aparece, pois é exercida no campo, durante as partidas. Ela é dependente por completo do talento e da capacidade de decidir uma partida de um atleta. Nem todos se dão conta—mesmo pessoas
inseridas no meio do futebol—de que para se possuir uma equipe forte o suficiente para pretender títulos, é necessário que tenhamos claro neste time quem é quem tecnicamente. Há de haver alguém em posição superior aos demais que deve servir de referência incontestável: um grande jogador que se destaque claramente dos companheiros. E este fato deve ser estimulado sem hipocrisia por quem dirige esta equipe. É fundamental para o equilíbrio necessário na procura do sucesso. Este organograma por mais simples e, muitas vezes, irreal que possa parecer é o que leva a se construir grandes e poderosas equipes. O Santos de Pelé, A Juventus de Platini, o Nápoles de Maradona e o Flamengo de Zico—para nos atermos em alguns poucos exemplos—só conquistaram o seu espaço em função da presença destes astros. Todos os demais jogadores se encontravam em um estágio técnico inferior e respeitavam esta diferença. Quando se tem um colega com o talento destes, a reação dos que com eles convivem é a de tentar se aproximar de suas capacidades, potencializando a capacidade da equipe. Porém, quando, por qualquer motivo, monta-se um time com vários grandes jogadores, o que vemos é uma relação difícil e predatória entre eles. Há uma luta de poder implícita que destrói qualquer possibilidade de boa convivência. Todos se preocupam em preencher o posto de líder que naquele instante está vago. Jogam para si e não para o conjunto. E nem digo que isto acontece por falha no caráter dos envolvidos e sim, por um sentimento humano que geralmente nos leva a concorrer com os mais próximos quando existe equilíbrio quanto às capacidades. Quando da minha experiência italiana em Florença, creio que os graves problemas de relacionamento que detectei ao chegar nasceram do vazio temporário de poder que existia naquela sociedade em virtude da contusão de Giancarlo Antonioni que ficou mais de um ano sem jogar. Sem o seu capitão e referencia técnica, a equipe ficou órfã e muitos se dispuseram a ocupar o seu lugar. Então, aquilo que deveria ser uma irmandade para que tivesse possibilidade de sucesso, tornou-se uma guerra de bastidores que jamais levaria o time a lugar nenhum.
O pior é que os gestores negaram-se a tentar encontrar uma solução e só nos restou rastejar naquele mar de lama até o fim da temporada. Que, aliás, foi sofrível.
Minimizando conflitos
Outra empreitada difícil aconteceu em uma das melhores equipes que atuei: a seleção brasileira de 1982. Aquele era um grupo extremamente perigoso de se auto-destruir caso não tivesse havido uma consciência coletiva da importância de se valorizar o aspecto comunitário frente às expectativas individuais. Possuíamos quatro atletas—considerados os melhores do país—que representavam diferentes estados da federação. Todos eles com culturas muito particulares o que ensejava a uma rivalidade que poderia estimular o ego de todos levando-os a atitudes personalistas que destruiriam o bem estar da comunidade. Como capitão da equipe detectei o perigo e, sendo um dos que estava no centro da polêmica para saber quem era o melhor, agi de uma forma que ficasse claro que um deles era o meu preferido o que de certa forma fragilizava a discussão pública. Coloquei Zico um patamar acima de todos os outros—incluindo-me aí. Isto criou uma referencia difícil de ser desacreditada. Com isto pudemos caminhar sem maiores complicações ainda que durante o mundial tenhamos tido alguns problemas absolutamente lógicos, mas que de certa forma prejudicaram a nossa equipe. É que quando participamos de um evento deste porte, sofremos o assédio de praticamente todo o planeta representado pelos jornalistas presentes. Quanto mais à frente conseguimos chegar—próximos da final—maior é esta sensação. Lembro-me que ao final de um dia de treinamento já em Barcelona, onde jogaríamos contra Itália e a então campeã mundial Argentina, demorei mais de uma hora e meia para
atravessar um espaço de apenas um metro por causa dos inúmeros pedidos de entrevista dos tantos jornalistas ali presentes. Havia gente de todo lugar: do Japão, da Alemanha, do México, da Austrália. Eram pessoas de praticamente todos os cantos do mundo que nos estavam ouvindo e reproduzindo as nossas opiniões. O que não deixa de ser um poder absurdo. E isto muitas vezes provoca reações sobre o ego das pessoas que nem mesmo elas se dão conta, produzindo certa euforia que os pode levar a acreditar que realmente estão próximos de se tornarem deuses. A aí, o espírito coletivo se esvai, pois para a manutenção daquela sensação é necessário que o mesmo estímulo se faça novamente presente. Tipo: vou fazer o gol porque assim os repórteres irão me procurar mais e mais. Aconteceu—não sei se exatamente por causa disto, mas não tenho dúvidas que a influencia destas emoções interferiu decisivamente— um fato de fundamental importância naquela campanha do mundial de 82 e que poderia ter provocado um final muito diferente do que ocorreu: logo após termos conseguido empatar a partida contra a Itália—resultado que nos favorecia e que nos levaria à semifinal da competição—e faltando aproximadamente um quarto de tempo para o final do jogo, roubamos uma bola no meio de campo e partimos para o contra-ataque com dois jogadores contra apenas um do adversário. Esta é uma situação clara de gol desde que possamos excluir o único defensor presente naquele instante. Um colega, que estava com a bola dominada, em vez de tocar para mim que corria ao seu lado pronto para recebê-la, preferiu o drible o que propiciou a interrupção da jogada por parte do libero Scirea. É claro que não conheço todas as variáveis que passaram pela cabeça dele naquele instante e que determinaram a opção pela atitude menos lógica e favorável ao adversário, mas não há dúvidas de que foi a pior escolha independentemente do resultado final. Ele até poderia ter driblado o italiano e feito o gol, porém o risco era muito grande para a importância da partida e pelo fato de que o resultado ainda se encontrado em aberto. Quando se está vencendo com larga diferença, este tipo de ação não produz tantas conseqüências, contudo quando se está um jogo equilibrado e difícil
pode por tudo a perder. E foi exatamente isso que aconteceu. Algo semelhante já havia ocorrido na partida contra a Nova Zelândia—a terceira que fizemos e onde já estávamos classificados: em uma jogada em que tínhamos quatro contra dois defensores, ele—o mesmo companheiro—resolveu chutar quase do meio de campo tentando fazer o gol que Pelé não conseguira em 1970 contra os Tchecos. Ali, não havia tanto perigo, pois a vitória era certa e a classificação também, mas me chamou a atenção e resolvi agir. O problema era encontrar a forma correta de me colocar para não criar um trauma ainda maior que interferisse no equilíbrio coletivo conquistado a duras penas. Decidi que eu não possuía liberdade suficiente—liderança relativa, muito comum em situações de extrema valorização de todos os membros da comunidade—para uma conversa reservada com ele para expor as minhas preocupações e entendi que a pessoa mais indicada para desenvolver aquele tema seria o treinador—que afinal não deixa de ser o comandante daquela nave. Procurei o Gilberto Tim—nosso preparador físico e com grande ascendência sobre o técnico e os jogadores—e o coloquei a par do que havia percebido. Era a pessoa da comissão técnica com quem tínhamos mais contato e para mim a indicada a fazer ver a Telê Santana os perigos que corríamos. Não sei se Telê teve esta conversa com o companheiro— acredito que sim–, mas infelizmente ela não evitou uma recidiva—o que não é nenhum crime, muito pelo contrário. É só mais uma demonstração do quanto somos frágeis e falíveis.
Liderança organizacional
Um cargo de comando sempre exige que quem o ocupe esteja preparado para liderar—é a necessidade básica. Os treinadores de futebol têm que possuir esta característica mesmo que tendo personalidades diversas. Já convivi com vários e cada um apresentava uma determinada forma de se colocar frente a seus comandados. Telê Santana—o meu favorito–, apesar de ser um indivíduo conservador, foi o mais democrata com quem trabalhei.
Telê Santana, o democrata
Digo democrata porque ele, ao contrário de boa parte dos técnicos de futebol, não trazia algo pré-determinado à equipe que passaria a dirigir. Ele acreditava que a melhor forma de conduzir os preparativos do time e extrair de todos os jogadores o melhor de suas capacidades era a de, depois de definir aqueles que ele considerava os melhores, trabalhar duro, porém com liberdade para que o próprio time encontrasse a melhor forma de jogar através da
repetição das situações de jogo. Por isso, praticamente todos os dias fazíamos treinamentos que mimetizassem as situações de jogo. Isto permitia que a força coletiva brotasse e se maturasse com naturalidade. Não é à toa que todas as suas equipes chamaram a atenção e chegaram, senão ao título, muito perto dele.
Não esqueço o nosso primeiro encontro—em sua estréia na seleção brasileira—que de alguma forma gerara certa ansiedade por termos personalidades e conceitos muito diferentes: Cheguei ao hotel apreensivo, pois seria a primeira vez que nos encontraríamos. Não sei exatamente porque, mas sempre me sinto um pouco desconfortável quando devo enfrentar situações desconhecidas seja por culpa do ambiente ou das pessoas. Felizmente a maior parte dos outros companheiros, eu já conhecia bem. Entrando no hall, percebo algumas pessoas sentadas à minha direita. Dirijo-me até elas para lhes cumprimentar. Telê ali se encontrava. Percebi que se vestia com simplicidade e estava sentado confortável e discretamente Quando me viu, abriu um largo e tímido sorriso e fez questão de levantar-se para se aproximar. Demo-nos as mãos. Seu olhar era profundo e incisivo e despertava absoluta confiança. Sua pele áspera e rude estampava a sua trajetória de vida. Apesar de sua pequena estatura passava uma impressão forte e segura. Não pude deixar de comparálo a meu pai. Soube a partir daquele instante que nos daríamos muito bem. Indivíduos que possuem entre suas virtudes a sensatez e a sinceridade facilitam os relacionamentos mesmo que em posições hierárquicas diferentes. As relações, neste caso, sempre são transparentes e honestas. Horas antes da primeira partida sobre seu comando, durante a sua última comunicação com o grupo de jogadores, fiquei sabendo que não começaria o jogo. Era a primeira vez que estaria na reserva em um jogo da seleção. Fiquei um pouco decepcionado, mas não me alterei. De vez em quando ele me dirigia o olhar parecendo avaliar as minhas reações. Seu discurso era claro e direto. Segurança plena. Explanava com naturalidade todos os seus planos. Atentamente eu procurava entender, já naquele momento, a sua personalidade e seus
conceitos. Ao final da preleção, mesmo sendo desnecessário, ele me puxou para um canto para explicar a sua opção. Ouvi-o com atenção e carinho. Sabia que estava procurando me conhecer e o tempo nos daria todas as oportunidades de aprofundar nosso contato. Alguns meses mais tarde, outra surpresa. Esta, muito mais agradável: seria o capitão da equipe e dividiríamos a liderança da equipe. Mas também sabia que aquilo era uma tremenda responsabilidade que ele colocava sobre meus ombros. Chegar à seleção brasileira sempre foi um sonho e foi o que me fez retardar a carreira médica, mas jamais havia imaginado que um dia assumiria algo tão portentoso. Carregar aquela tarja verde-amarela no braço esquerdo era um peso e uma honra que eu deveria rapidamente entender exatamente o que representava. Porém, mesmo assustado com a novidade, sentia-me orgulhoso e confiante. O que mais intrigava era porque ele havia me escolhido se no primeiro jogo nem mesmo fui titular. Que tipo de lógica ele tinha utilizado para determinar esta nova ordem? Até hoje não tenho convicção das suas razões mesmo que tenha suposições que eventualmente possam esclarecer estas dúvidas, mas só ele pode responder a estas questões. Só sabia que a partir dali eu teria mais do que nunca que fazer de tudo para corresponder à sua confiança.
Capitão da seleção
Ser capitão de uma equipe é muito mais que apenas representa-la dentro de campo frente ao árbitro. É claro que esta função é de fundamental importância. Afinal, manter uma boa relação com a autoridade constituída é, no mínimo, uma questão de bom senso. Quem define o bom encaminhamento de um confronto esportivo é a capacidade de discernimento, destreza e imparcialidade dos juízes. Esta convivência se torna ainda mais decisiva quando de partidas internacionais. Sendo oriundos de culturas diferentes é necessário que se estabeleça rapidamente uma proximidade baseada na confiança mútua. Assim, as divergências quanto às várias questões inerentes ao espetáculo serão tratadas de forma civilizada e as soluções se adequarão ao interesse das partes envolvidas. Mas essa é a função menos espinhosa. Muito mais importante é a relação com a própria equipe. Ser depositário da confiança dos demais jogadores não é algo que se imponha por vontade própria. Ele é fruto da credibilidade adquirida através dos tempos. Das ações executadas em prol da comunidade. Da disponibilidade de lutar por melhores condições de trabalho para todos e jamais por interesse pessoal. Do entendimento correto sobre as nuances de cada jogo. Dos resultados obtidos através de suas determinações e sugestões. Do respeito às diferenças de personalidade e caráter. Do bom humor e da amizade e compreensão. Ter em mente, enfim, os interesses solidários. Aliás, o possuidor desta referência nem mesmo necessita ser o capitão, mas sempre será a grande liderança do time. Alguns indivíduos, por culpa de suas fragilidades, jamais terão condições de se aproximar desta função. Mas se porventura forem possuidores de sensibilidade apurada deverão saber a quem delegar suas representações. É importante salientar que esta figura é absolutamente indispensável na formação de uma equipe vencedora. Não possuí-la é como se em determinado reino o soberano morresse e não deixasse sucessor. Provavelmente todos os auxiliares diretos se apresentariam para assumir o posto. O resultado disso seria uma sangrenta luta pelo poder que levaria aquela comunidade a perder toda a possibilidade de uma convivência harmônica e que produzisse bons frutos a todos
seus integrantes. Portanto, uma equipe sem uma hierarquia social estabelecida está fadada ao fracasso. Reconhecer este fato é básico para quem participa de qualquer sociedade constituída, esportiva ou não. Porém, este poder nunca é definitivo; nunca é absolutamente estável. Eventualmente, as mudanças de expectativas, as pressões externas, as inseguranças, a ambição e a manipulação podem servir como meio de cultura para revisão das posições coletivas assumidas anteriormente. Passei por isso na discussão acerca da premiação proporcional aos resultados quando da copa do mundo de 82. Na primeira reunião que fizemos para tentar construir uma posição comum a todos os jogadores percebi que estávamos muito longe de encontrarmos consenso. Os valores eram tão díspares que afirmavam certo desconhecimento sobre a realidade econômica. Fiz ver que tínhamos que ter uma proposta única para a negociação. Depois de muita discussão chegamos a um número que agradava a todos: cem dinheiros (nem lembro que moeda era). Já tínhamos dado um enorme passo. Como eu era o vetor de comunicação com a direção da confederação perguntei até onde deveria chegar caso houvesse uma negativa. Como poderia negociar sem ter claro os limites que o grupo me oferecia? A posição, aclamada por todos, foi simples e radical—não recuaríamos um único centavo. É tudo ou nada! E assim mantive a postura durante todo o processo de negociação achando que, dando tudo errado, jogaríamos só pelo prazer. Mas não foi isso que aconteceu. Dias antes da estréia, em uma assembléia, a maioria aceitou a proposta dirigente: 35 dinheiros pelo título. Que frustração! Nunca me senti tão lesado. Infelizmente jamais pudemos quantificar o trauma que aquela decisão provocou na alma de alguns um de nós.
Difícil decisão
Alguns anos mais tarde, na preparação para a Copa de 1986 no México, nós tivemos um problema de difícil solução sabedor que eu era das suas posições sobre alguns parâmetros. Dois de nossos companheiros, Leandro e Renato, não conseguiram retornar ao alojamento no horário determinado depois de um dia de folga. Fiquei sabendo do ocorrido somente na manhã seguinte. Também soube que ele havia permanecido acordado até a chegada dos dois colegas e que o episódio o deixara extremamente irritado. Entendia que a confiança havia sido rompida e pensava em dispensá-los imediatamente. Ainda deitado na cama, ponderei sobre a melhor maneira de me comportar e de como iria fazê-lo ver que uma decisão tão importante não deveria ser tomada sem um mínimo de reflexão. Afinal, todos nós estávamos em um processo fundamental para nossas vidas e as conseqüências, quaisquer que fossem, seriam desastrosas. Já havia sido marcada uma reunião onde possivelmente nossos companheiros seriam excluídos. Pelo menos era essa a impressão que tínhamos. Durante o debate, ele demonstrava extremo nervosismo. Não seria nada fácil para ele tomar uma decisão daquelas. Éramos como uma família prestes a ser dividida. Pedi a palavra e argumentei que pelo fato de nós estarmos a quase dois meses isolados de tudo e de todos, deveríamos ter tido uma folga mais longa que pudesse compensar uma reclusão tão intensa e que todos, sem exceção, gostaríamos de ter aproveitado mais aquele dia. Que a falha dos colegas tinha uma razão clara: a necessidade de se livrar de tensão que vivíamos desde que lá chegamos. Eu achei que ele nem iria me dar atenção, mas aconteceu exatamente o contrário. Passou a ouvir todas as colocações, sempre semelhantes, e a cada
comentário ele ficava um pouco mais relaxado. No final, felizmente, ele decidiu não demitir ninguém. Foi uma vitória do seu bom senso mesmo contra suas convicções.
A dor de um líder
Quando da derrota para a Itália na Copa de 82, a primeira pessoa que vi depois do término da partida foi ele. Sua face era a própria expressão da dor que todos nós sentimos. Mas ele tentava desesperadamente nos consolar. Esperou-nos à beira do campo e a cada um demonstrava o seu carinho. No vestiário o sofrimento era imenso. Uns choravam copiosamente enquanto outros invadiam as suas entranhas para desabafar. Ele olhava para o infinito e parecia tranqüilo apesar do golpe. Sentia-se confortado por nosso esforço, acredito. Nem por isso deixava de sofrer. Queria muito abraça-lo, protege-lo. Não tive forças. Mais uma vez me transportou a meu pai. Julguei que a dor que os dois estavam sentindo era da mesma intensidade. Chorei por eles muito mais que por outra coisa, mas as lágrimas escorriam com dificuldade. Estava esgotado e ressecado. Só vim saber exatamente o que representava aquele sentimento muito tempo depois quando meu velho partiu. Queria ser um milagreiro para trazê-lo de volta, assim como para resgatar aquele título mundial a quem mais o merecia: Telê Santana.
Telê foi um exemplo de quem comanda a partir do conhecimento e da observação. Sua ascendência nascia da confiança que os atletas depositavam em suas decisões técnicas. Porém, outros treinadores utilizam métodos menos sublimes—sempre de acordo com as suas personalidades. Há aqueles que entendem que só a força—física, se necessário—consegue domar seres tão diferentes entre si e que competem pelo mesmo espaço. Encontrei alguns destes, algumas vezes. Um deles parecia o próprio militar reformado pelos seus modos e sua filosofia. Ele gostava de falar alto quase gritando, quase nada o agradava e esta falta de sensibilidade era o que mais assustava em seu caráter. Era absolutamente cego em sua apologia da disciplina como se isso fosse a única medida a contar nas relações humanas. Este tipo de comportamento discutível só pode dar certo, creio, quando encontramos uma tropa tímida e indefesa de jovens que ainda não possuem vontade própria nem poder para enfrentar qualquer tipo de desmando. Aí, torna-se mais fácil impingir regras rígidas e imutáveis de comportamento que no primeiro momento podem dar resultado. O medo, às vezes, provoca uma melhora no desempenho dos indivíduos como uma forma de prevenção ou preservação. Mas, ele não se mantém eternamente. Com o decorrer da maturação, começa a haver questionamentos que afloram outros meios de se chegar aos mesmos objetivos. Com estes são, em geral, mais sadios e mais fáceis de conviver, provocam o nascedouro de reações pontuais que se não chegam a derrubar o opressor, destroem a capacidade de sobrevivência daquela sociedade oprimida.
Visita inexplicável
Jamais diria que ele é ou foi um destes. Na verdade, tínhamos até uma boa relação—com até hoje–, mas há uma história interessante que mostra bem como os nossos treinadores agem em busca de um comportamento, digamos, adequado para seus jogadores. Eu ainda estava de ressaca pela eliminação de nosso time na copa do ano anterior quando recebi mais uma convocação para a seleção nacional em meados de 83. Teríamos uma excursão pela Europa e o novo técnico era o Carlos Alberto Parreira que uma década depois levaria o futebol brasileiro ao seu quarto título mundial. Confesso que aquela nova experiência foi recebida sem muito entusiasmo, principalmente porque era um dos poucos remanescentes daquela fantástica equipe de Telê e uma das poucas coisas a me estimular era a de conhecer países que ainda não havia tido a chance de visitar para aprender algo sobre suas culturas. E foi assim que pude passar dias interessantes na Suécia. Lá descobri, em convívio com algumas pessoas, que a imagem libertária e anárquica que havia criado em minha mente durante os anos de ruptura das amarras conservadoras do comportamento humano que teve como clímax o verão de 68, já eram coisas do passado. Apesar de ainda manterem condutas altamente progressistas, a sociedade sueca havia retornado as suas origens, revalorizando a família a outros conceitos tradicionais. Durante os dias que lá permaneci ocorreu um fato inusitado e de cuja razão não conheço explicação até hoje. No hotel em que estávamos hospedados me coube um pequeno apartamento, um pouco isolado do corpo principal. Na véspera da partida contra a seleção sueca que terminou em um empate de três gols, encontrava-me, após uma
refeição, deitado em minha cama lendo uma de minhas leituras prediletas naquela época quando inesperadamente recebo uma visita em meus aposentos. Ao toque da campainha respondo, sem me mexer de onde estava, que a porta estava apenas encostada e que poderia entrar. Pelo tom de voz que acreditava ser de nosso massagista, imaginei que seria algum recado da comissão técnica. Qual não foi a minha surpresa quando entram em meu quarto todos, eu disse TODOS, os integrantes da comissão. Estavam lá, ao meu lado, e sem razão especial, o técnico, preparador físico, auxiliares, massagistas, etc. Mal cabiam no minúsculo cômodo. Abaixei o livro junto a meu peito e aguardei alguma explicação para tamanha "invasão". Todos pareciam extremamente desconfortáveis, pois, acredito, esperavam encontrar uma cena totalmente diferente daquela a que se defrontavam naquele instante. Uns permanecerem em pé, outros se sentaram ao meu lado, mas ninguém se manifestou verbalmente. Divertindo-me interiormente com aquela cena surrealista e lembrando-me de algumas obras de Kafka, aguardei pacientemente por intermináveis minutos. Como nada me foi dito ou perguntado e como se absolutamente nada tivesse ocorrido, voltei a levantar o livro e tornei a ler enquanto meus hóspedes cabisbaixos se retiravam lentamente. Até hoje me pergunto que coisas pensavam encontrar? Talvez um flagrante, um desrespeito às regras da famigerada "concentração". Quem sabe estar namorando uma daquelas loiras fenomenais que lá existem. Até que seria uma boa, mas tenho certeza que eles, como muita gente, não me conheciam, pois sei respeitar as regras do jogo apesar de muitas vezes lutar para modificá-las.
Excesso de paternalismo
Este tipo de conduta controladora é estimulado pelo sistema o que provoca um crônico conflito entre treinadores e jogadores fruto de freqüentes choques de força. No fundo, ele tem sua raiz na forma como ocorre o desenvolvimento de um jogador de futebol no Brasil e de como ele é tratado. Desde jovem o atleta é considerado como uma jóia rara e lhe é dado tratamento diferenciado, não só em relação aos demais que se encontram no mesmo grupo de trabalho, como principalmente na comparação com os demais jovens de nossa sociedade. Enquanto estes estão em processo de qualificação, desdobrando-se para adquirir um nível de capacitação que possa inseri-lo no mercado de trabalho de uma forma positiva, mesmo que isto ocorra gradualmente e exija uma conduta paciente de conquista progressiva dos espaços que nem sempre se apresentam facilmente, aqueles, desde cedo, se habituam a conviver com situações já determinadas e são pouco exigidos para atingir graduações sociais de certo nível, as alcançando extremamente despreparados. Isto prejudica sua noção de realidade e os torna dependentes do sistema pois apresentam imensa dificuldade de maturação de personalidade que só é possível quando vivenciamos todos os estágios. No caso do futebol, muitos estágios são descartados e o adolescente de um momento para outro se encontra em postos avançados sem o mínimo preparo para com eles conviver pois muito ele perdeu durante o trajeto. Estão podem desenvolver uma característica própria dos despreparados quando adquirem algum tipo de poder: o egocentrismo e a onisciência. Quando não encontram algum obstáculo, esta é exatamente a forma com que se define este tipo de personalidade que não deixa de ser uma defesa contra as
dificuldades que encontra para conviver com um mundo tão hostil, não na acepção bélica e sim pelas suas características especiais que exigem conhecimento e discernimento para possibilitar o sucesso. Falo aqui do sucesso pessoal e não do profissional, como geralmente é o caso, pois na imensa maioria dos exemplos estes indivíduos são reconhecidos como referências exclusivamente pelo aspecto profissional, enquanto se sentem discriminados pelo lado social e se isolam em guetos, pouco contribuindo para o crescimento da sociedade em que vivem. Isto porque se sentem inferiorizados em relação aos demais de sua geração por falta de um processo que os qualificasse para responder às necessidades que o posto alcançado lhes exige. Isto provoca repetidos confrontos com algum outro poder constituído como se eternamente sua posição estivesse em perigo. É claro que existem questões em jogo passíveis de luta para que sejam modificadas e devem ser motivos de conscientização e confrontação, mas na maioria dos casos a questão é simplista e não representa uma busca por mudanças e sim, apenas uma forma de tentar a toda sorte a manutenção de um poder que ele sente sempre ameaçado. Viver com muitos direitos e poucos deveres faz parte deste mundo virtual e é muito prejudicial à maioria dos envolvidos.
Solução simplista
Como, em geral, estes confrontos acontecem quando os resultados da equipe se apresentam insuficientes frente à expectativa criada, a solução quase que única dos times brasileiros é retirar o grupo de atletas de seu habitat natural e leva-lo para longos dias de retiro. Não há o menor esboço de reação por parte dos atletas em virtude das
dificuldades que eles têm de enfrentar determinadas questões sociais, fruto de sua formação deficiente e dos privilégios a que eles sempre estiveram habituados. Estas questões dizem respeito às tradicionais condutas tomadas por nossas estruturas esportivas em relação aos atletas com o objetivo de reprimir o ser que ela mesma criou. O atleta é um indivíduo criado e desenvolvido em uma situação de extremo paternalismo o que gera dependência exagerada ao sistema. Conheci alguns colegas que nunca tiveram a mínima noção da cor de seu próprio passaporte apesar de inúmeras viagens que realizara. Isto porque jamais o tiveram em mãos, pois sempre havia alguém do clube que fazia para ele as tarefas banais de embarque e desembarque. Outros jamais pisaram em uma repartição para obter algum documento, incluindo o tal passaporte, pois também o sistema fazia por ele. Aliás a única coisa que o sistema ainda não desenvolveu nesta sua conduta e que por isso ainda não pôde oferecer aos seus atletas, são os filhos que estes fazem. No mais, se houver a acomodação deste, tudo lhe é dado na boca. Em contra partida, enquanto criam crianças com cara de adulto, devem ter maneiras de controlar os movimentos destes meninos e para isso utilizam todo tipo de controle. Um dos ícones desta filosofia é este tipo de postura chamada concentração que foi implantada com o único objetivo de isolar os atletas do meio social em que vivem para preservação do próprio sistema pois os meninos poderiam realizar alguma travessura que levaria a opinião pública a discutir o processo ideológico da formação do atleta. Quando criamos alienados, estamos favorecendo o aparecimento de uma série de atividades paralelas aos atletas que servem para estes sejam explorados e manipulados até pelos próprios dirigentes. Quando destes escapam, caem nas mãos, nem sempre melhores, dos conhecidos empresários. Estes são amas que realizam tudo que o outro deveria fazer para tocar sua vida. Tratam o seu cliente como o sistema o vê, isto é: como criança. Com tantas amas a acompanhar seus passos para que não façam nada errado, os jogadores deveriam se revoltar. No entanto, a maioria a entende como favorecimento, pois são métodos que lhes
são cômodos. Por trás deste comportamento está a defesa pública de seus atos. Quando há o retiro antes das partidas, o jogador se sente protegido da opinião pública mesmo que ele não tenha dormido em casa um dia sequer da semana. Sem ela, ele ficaria exposto cotidianamente aos cuidados da sua torcida e teria que se tornar mais responsável. O quê, ele jamais foi educado a ser.
RIVALIDADES
RIVALIDADES
O futebol, até por seu aspecto cultural e competitivo, é mestre em criar rivalidades. Rivalidades entre clubes é a mais freqüente por seu caráter regional já que a proximidade física estimula o confronto e a comparação. E todas elas com uma força que ultrapassa qualquer limite. Mesmo alguns impensáveis como, por exemplo, quando a Coca-Cola resolveu patrocinar em passado recente alguns clubes da América do Sul como Grêmio de Porto Alegre e Boca Juniors. O problema é que a empresa de refrigerantes possui em sua logomarca a cor vermelha que caracteriza os maiores rivais das duas equipes— Internacional e River Plate. Para que a parceria pudesse seguir adiante foi necessário que se extraísse o vermelho. Há rivalidades históricas que muitas vezes extrapolam os limites de um campo de futebol como entre Celtic e Rangers da Escócia que tem como pano de fundo as diferenças religiosas. Mas, para nós brasileiros a grande rivalidade é com os argentinos, provavelmente desde os primórdios dos dois países. Além de sermos vizinhos, há o aspecto cultural que nos diferencia e afasta. Acho até que ela vem desde o século XV provocada pela expansão marítima de Portugal logo acompanhada pela Espanha. Com a assinatura do tratado de Tordesilhas no final daquele século definiu-se territorialmente o conflito, mas não a sua essência. Piorou ainda mais quando Portugal ficou sob domínio espanhol com a morte de D. Sebastião. Eu creio que esta animosidade histórica veio junto com os nossos colonizadores e construiu a rivalidade entre Brasil e Argentina que atingiu a sua maior temperatura nas batalhas nos campos de futebol no século
passado. Para muitos de nós estes confrontos representam episódios de uma guerra que parece que jamais irá se acabar.
Guerras são guerras.
Guerra fria, guerra santa, guerra sangrenta, etc. Existe toda sorte de adjetivos para caracterizar a mais absurda das ações humanas. Mas as guerras nem sempre são fruto de determinações destemperadas geradas de mentes insanas. Eu sei, eu sei que este tipo de análise jamais provocaria um sentimento, digamos, contemporizador na cabeça da maior parte dos cérebros privilegiados. Mas se nos ativermos às várias nuances de gênero que este termo passou a representar, veremos que nem sempre guerra é Guerra. Às vezes, utilizamos este vernáculo para, categoricamente, definirmos uma forma de atingirmos, ou de uma sociedade construir, uma nova ordem que restabeleça uma relação mais sã entre seus constituintes. Por si só já está implícito, neste ponto, um gigantesco conflito. Talvez devêssemos encontrar uma forma mais pura e palatável para exprimirmo-nos. Seria muito melhor. Infelizmente nossas limitações nos empurram para contrastes nem sempre fáceis de encontrar o entendimento. Pior é que eventualmente chamamos um confronto esportivo de guerra. Alguns realmente devem ter sido bem representativos, mas no fundo o que temos aqui é uma grande confraternização—se os
zagueiros forem de boa índole, é claro. Exceto quando entre as quatro linhas cruzamos com os argentinos. Quem foi que disse, certa vez, que tango e samba não combinam? Sei lá! Nos tempos modernos, a voz e o jeito de Maradona talvez seja a fina flor do que rejeitamos absolutamente. Não, não é verdade. Diego é só um pouquinho a cara argentina. Quem enfrentou as travas das chuteiras portenhas sabe exatamente do que estou falando. São de uma agressividade tão absurda que mesmo no seio da marginalidade seriam contestadas e reprimidas. Mas guerra é guerra. Sempre há uma causa e um ideal ainda que desumano. E tudo em círculo, sempre vicioso. Os nazistas queriam acabar com os judeus que tentam exterminar os palestinos que sonham destruir a América que ajudou a derrubar Hitler. Desculpem, não tenho nada contra nenhum destes povos. Até porque estas decisões sempre foram de gabinete, estimuladas nos bancos escolares e executadas por tristes soldados que nem sempre sabem o por que. E os argentinos até em guerra de verdade eles se meteram. E logo com quem! O pior é o conflito contra os ingleses foi uma guerra ingrata pela posse de um ilhéu pequeno e feio causando um sem número de jovens desaparecidos. Agora, estão pagando por seus erros. Não me incluo entre os que sentem ojeriza por eles. Gosto dos argentinos apesar da soberba portenha. Alguns, pelo menos. E cada vez mais se parecem com a gente: crise social, desemprego e até outro dia, de joelhos para o FMI. Nem em mundiais ultimamente eles têm ido bem. Que barra! Mas temos que reconhecer que pelo menos do futebol eles possuem mais organização. Pelo menos é o que me parece ainda que muitos digam que as incompetências dos cartolas sejam semelhantes. Não acredito. Os nossos são tão ruins que é difícil imaginar algo parecido em qualquer lugar do mundo do futebol. O mercado comum do sul do nosso continente demora a caminhar. Talvez por culpa da rivalidade que sempre está implícita nas relações entre os dois povos. Mas já temos um relação bilateral melhor do que há pouco tempo. Eles bem que poderiam nos auxiliar um pouco na gestão do futebol, mas para isso eles teriam que nos oferecer um erro estratégico de gigantescas proporções: importarem
a fórmula de gestão dos nossos dirigentes esportivos. Aí eu diria que esta guerra estaria ganha. Pena que burros eles não são. Não vão querer importar o que de pior possuímos. Estes aproveitadores que às vezes aparentam estar travestidos de atravessadores que comandam o nosso futebol. Ou seria o contrário? Até pensei em ligar para o Passarela para que pudesse dar uma mãozinha pra gente. Parei no código de área. É que seria muita sacanagem com quem está sofrendo tanto nestes últimos tempos. Temos mesmo que arregimentar forças por aqui mesmo; sabendo que neste caso ao nos associar aos vizinhos do sul teríamos uma força incomum. Desde que estes gestores estivessem distantes dos negócios do futebol daqui e de lá.
Agressividade dos vizinhos
Mas é dentro de campo que a coisa pega. Aqui é que realmente temos muitas diferenças. Somos pacatos e artísticos para jogar bola já os muchachos são realmente duros. Jogar contra um time ou uma seleção defendendo as cores deles é uma verdadeira epopéia. Quase uma briga de galo. É que os meninos têm como especialidade em sua graduação futebolística uma matéria que não faz parte de nosso currículo. Algo que poderíamos chamar de agressividade esportiva. Como se fosse possível uma definição para este tipo de comportamento. Que quer dizer em última análise a incrível e incomparável capacidade de provocar, insultar, irritar e.agredir. Por coincidência ou não, a minha primeira partida internacional aconteceu em Buenos Aires no distante ano de 1979. Era uma partida eliminatória da Copa América. O estádio do River Plate era pleno de gente. Jogávamos pelo empate e a condição técnica das duas equipes era semelhante. Já no vestiário sentíamos um clima um pouco mais rude que o habitual. Centenas de policiais nos davam "proteção". Por suas expressões diria que se não estivessem em serviço poderiam ser confundidos com perigosos torturadores dos porões das ditaduras em que vivíamos. Sentíamo-nos acuados e perigosamente desprotegidos. Mas não há de ser nada, no campo temos mais qualidade e haverá liberdade, assim ninguém poderá nos atrapalhar, pensei ingenuamente. E reconheci a imprudência logo na primeira bola que toquei. Era um lance simples no meio de campo. Dei um passe lateral e quando começava a me deslocar para receber um pouco mais à frente, recebo um cutucão (ou seria uma machadada?) no tornozelo. Daqueles inesquecíveis. Reflexamente olho para meu pé e percebo que a meia estava rasgada e o sangue corria solto. Olhei para o juiz como a implorar por uma repressão na mesma intensidade da agressão e ele fazia gestos como se nada houvesse acontecido: choque normal de jogo. Não bastasse isso, ao tentar me levantar para ver o estrago em toda sua extensão, sinto como uma chuva repentina a alagar meu rosto. Era uma bela e velha cusparada oriunda de uma boca sedenta que acompanhava dois olhares esbugalhados que tentavam penetrar em
minha alma como a tentar entender que ser estranho era eu. Magro como um palito, feio como ninguém e que falava português ainda por cima. Quase um E.T. para os seus padrões. Só faltava ser negro. Mas aí já seria demais. Provavelmente ele me eliminaria em segundos. Dei de ombros e prossegui em calma. Poucos minutos depois, caí na besteira de fazer uma intervenção dando um carrinho para impedir o avanço rival. Consegui tomar a bola, mas o fato de estar deitado deve ter oferecido ao inimigo a impressão de que estaria abatido como um abutre e sem pestanejar ele cravou suas travas pontiagudas no meu peito como se fosse uma série de agulhas a me perfurar. Talvez quisesse fazer uma biópsia. Quem sabe? E lá me fui jogo afora com aquela estranha tatuagem a ornar meu corpo. Quando fiz o primeiro gol, parecia que estava lavando a honra manchada por aquelas chuteiras. O segundo então, foi uma maravilha! Como obviamente jogos como aquele não podem terminar com todos os jogadores (gladiadores?) em campo e Zico havia sido expulso por não suportar mais as tentativas de intimidação, a praça de guerra ia ficando cada vez pior. Felizmente tudo tem um fim. Foi um alívio e pude voltar para casa são e salvo apesar de dezenas de escoriações pelo corpo.
Pelé ou Maradona
Recentemente, esta rivalidade com os argentinos alcançou níveis perigosíssimos quando da votação aberta para definir quem teria sido o melhor jogador do mundo. Nesta discussão sobre Pelé e Maradona—quem foi ou é o melhor, já que neste quesito, no inconsciente dos litigantes, não existe passado—o que vemos é um extremo radicalismo de ambos os lados como se esta fosse uma questão fundamental que resolvesse todas as diferenças que eternamente nos separaram. Se nem mesmo as ingênuas geladeiras ou os agressivos fogões que fazem parte das discussões sobre o balanço comercial entre os dois países nos conseguem aproximar— muito pelo contrário–, não poderia o confronto esportivo ser definido de forma sensata e consensual. E jamais seria, dada a diferença de análise que intrinsecamente faz parte dos conceitos que argentinos e brasileiros utilizam. Poderíamos inclusive estender as comparações além dos limites dos gramados, pois é também com outras variáveis que muitos definem suas opiniões quando se esgotam os argumentos esportivos. Acompanhei Pelé por muitos anos, ainda moleque, já que a sua equipe à época—e creio tenha sido—era a que jogava o futebol mais
belo. De uma coreografia e de uma beleza absolutamente incomparável com tudo o que temos visto nos últimos anos quaisquer que sejam os parâmetros que estabeleçamos. Também tive uma única oportunidade de estar em campo jogando contra o seu Santos já no ocaso de sua carreira em terras brasileiras. Já com Maradona pude ter um contato mais estreito pois foi meu contemporâneo e em muitas ocasiões dividimos o mesmo espetáculo. Tanto nos encontros entre argentinos e brasileiros como pelo campeonato italiano. Pelé tinha uma estrutura física descomunal que aliada a uma técnica invejável lhe proporcionava uma clara superioridade frente a seus pares. Isso, mesmo tendo convivido com jogadores excepcionais como Pagão, Garrincha- um dos que colocaria neste sufrágio–, Coutinho, Zizinho—outro de quem dizem maravilhas— e muitos mais. E esta qualidade física é o que o diferenciava dos demais. Tenho cá para mim que se qualquer um destes citados portasse as mesmas condições que ele, poderia tranqüilamente substituí-lo. É bom ter em conta que as qualidades técnico-táticas de um jogador qualquer que seja o esporte praticado é completamente dependente das suas realidades físicas—vocês nunca viram um velocista ser meio-campista—e que se fosse dado a alguns atletas determinados predicados físicos, eles seriam muito mais completos. Maradona possuía algumas deficiências físicas. A mais clara era a sua ineficiência com a perna direita o que o impedia de utilizá-la no mais das vezes. Em muitas ocasiões vi Diego usar o pé esquerdo no lugar do outro—que naquele momento seria mais racional—até quando isto parecia impossível. Porém, até em função das limitações como a acima citada, ele desenvolveu uma habilidade com a bola que mais parecia coisa de mágico. Mais que Pelé. E estas qualidades, inegavelmente, o transformaram em um ícone do futebol nos anos oitenta. Já vi os dois fazerem absurdos. Em um jogo em Ribeirão nos anos 60, faltavam 5 minutos para o término da partida e estava 3×2 para o Santos. A partida parecia definida quando em poucos ataques o Botafogo virou o placar. O negão, parecendo possesso, pegou a bola
no fundo de suas redes e correndo como nunca se encaminhou ao meio de campo para dar a nova saída. Não é que ele fez mais dois gols e deu a vitória à sua equipe? Fantástico! No primeiro jogo entre Fiorentina e Nápoles pela Copa Itália da temporada 84-85 vi uma cena aterradora: o lateral direito napolitano deu um passe aparentemente despretensioso para Maradona esperando que ele a devolvesse de modo comum. O baixinho em vez disso, deu um toque estupendo na bola fazendo com que ela passasse por cima do seu próprio marcador colocando o lateral na cara do gol. O paisano ficou tão assustado com o improviso do colega que nem mesmo conseguiu chutar e ficou tentando entender o que se passara com aquela cara de abobalhado que só os ignorantes possuem. Extraordinário! Gente, é uma grande bobagem tentar compara-los. Até porque possuíam habilidades diferentes. Mas, se fosse para criar uma imagem que definisse quem é quem, eu diria que Pelé era o cara do trapézio que fica de cabeça para baixo para receber o colega. Um indivíduo que não pode errar nunca senão coloca a vida do outro em risco. Já Maradona seria este outro que jamais se cansa de dar um milhão de mortais sem se dar conta do perigo que corre. E sem eles, obviamente, não haveria circo.
SELEÇÃO BRASILEIRA
Carimbo no passaporte
Quando falamos de rivalidades estamos tocando fundo em algo muito especial do futebol que diz respeito às emoções que sentimos neste esporte. Principalmente por causa da presença de público a nos acompanhar em cada instante do nosso trabalho. Como já disse anteriormente a minha primeira partida internacional foi contra esta mesma Argentina e algumas das coisas que iria enfrentar na minha saga no futebol já se fizeram sentir naquela ocasião. Era um jogo da Copa América que naquele tempo possuía um charme todo especial. Principalmente porque para muitos de nós era uma das poucas oportunidades de jogar fora do país. E enfrentar a Argentina – campeã mundial no ano anterior e com todos seus principais jogadores em campo, inclusive Maradona—sempre foi uma pedreira pelo que já vimos. O estádio do River Plate estava todo tomado. A noite úmida e fria colaborava para aumentar a nossa ansiedade. Quando entramos em campo, recebemos uma vaia fenomenal. Logo no aquecimento percebi que o terreno de jogo se tornaria uma lástima em muito pouco tempo. Como nunca me senti à vontade em gramados enlameados, achei que teria alguma dificuldade para jogar bem. Logo eu que estava em um período de afirmação e buscando um lugar na seleção. Mas não havia outra escolha: era a minha grande chance. Ainda me adaptava ao jogo quando em um cruzamento de Zé Sérgio, nosso ponta-esquerda, vi-me inesperadamente à frente do goleiro argentino. Mesmo com todos os riscos que corria, por culpa da, digamos, falta de delicadeza adversária, não tive dúvidas e mergulhei para cabecear e fazer o primeiro gol de nossa equipe. Além da alegria da comemoração com todos os companheiros, senti mesmo, na verdade, um alívio dos grandes. Não é mole enfrentar
uma estréia tão badalada como aquela e aquele gol me transmitiu subitamente uma confiança que estava buscando, mas que ainda não encontrara. Dali para frente tudo ficou mais fácil até que perdemos o Zico por expulsão. Está certo que um deles também foi embora mais cedo, mas Zico era Zico e a sua saída fez crescer o rumor nas arquibancadas. Aí, foi um deus nos acuda. Com a massa ensandecida, como é próprio da torcida argentina, eles nos acuaram e rapidamente, apesar dos nossos esforços, chegaram ao empate que já estava caindo de maduro. As coisas iam ficando cada vez mais difíceis quando em um contra-ataque o zagueiro central deles praticamente atropelou um dos nossos dentro da área: pênalti. Nosso batedor oficial desta infração capital sempre foi o Zico, porém o homem estava fora. E agora, pensei. Eu que nunca havia tido esta responsabilidade na seleção fiquei na minha. Não tinha a mínima idéia de quem seria o crucificado. Pelo menos era assim que via aquela situação sendo calouro em uma empreitada tão formidável. Rodava de um lado para outro a espera da definição quando surpreendentemente nosso treinador, Cláudio Coutinho, mandou a ordem: bate o Sócrates. Gente, que sufoco! É claro que já havia passado por situações estressantes como aquela, mas jamais com tal magnitude. Como ser o último a bater pênalti em uma decisão do campeonato do interior do estado de São Paulo ou de um jogo comum do Corinthians. A de Buenos Aires seria muito diferente: uma experiência nova e assustadora. Nem me lembro direito como estavam meus nervos. O que não tenho dúvidas é que o peso de definir uma partida como aquela era gigantesco. Até porque o pênalti é o único ato de um jogo de futebol em que a comunidade não participa. É uma ação absolutamente individual. Mas não havia como fugir. Era tudo ou nada. Peguei a bola, coloquei-a sob meu braço e lentamente foi me encaminhando para a área do inimigo. A multidão me vaiava, xingava e tudo o mais que fosse possível naquele momento para me enervar. Como se eu pudesse ficar ainda mais nervoso. Pus a bola na marca de cal, calculei o que faria, corri e chutei: Gol! Gol! Gol! Saí gritando e correndo para os fundos do campo onde estava a pequena
torcida brasileira quando ouço um apito estridente. Voltei-me e não pude acreditar. O juiz anulara a cobrança: haviam invadido a área. Ah! Como eu queria esganar o apressado. E lá vou eu de novo— imaginem como? A mesma rotina, o mesmo perigo. Resolvi adotar os mesmos gestos e atirar no mesmo canto do gol. Quando ouvi a torcida calada e a bola no fundo das redes pude entender que emoção não me faltaria naquela profissão que escolhera.
Orgulho nacional.
Por estas e outras é que jogar na seleção brasileira é algo incomparável, diria. Ela sempre foi motivo de orgulho nacional e não temos nada mais conhecido mundialmente que nosso futebol. Principalmente em função da nossa seleção. Sem dúvida que as
proezas e a arte de nossos jogadores que estão espalhados pelos quatro cantos do mundo servem como embaixadores para o nosso país, mas isso só foi possível por culpa de suas participações com a camisa canarinho. Raros são aqueles que fizeram carreira no exterior sem que tivessem uma passagem que fosse pela seleção. Se bem que nos últimos anos, vários tenham emigrado ainda adolescentes em busca do Eldorado. Jogar na seleção é muito mais que vestir uma camisa tradicional e respeitada, é representar uma nação carente de conquistas e cansada de ser vista como de classe inferior. Isso porque este símbolo, historicamente, é provocador de gigantescas comoções nacionais. Não é qualquer povo que em época de Copa do Mundo interrompe todas as suas atividades, onde quer que esteja: nos Alpes, na floresta ou no meio do mar; e que se mobiliza para estar junto, torcendo por seu time e seu país mesmo que o adversário seja da nação onde estejam alojados. O principal motivo de ter adiado a minha especialização e, por conseqüência, o exercício da medicina, foi a pretensão e o sonho de um dia vestir nossas cores. Mesmo sendo um pouco tarde para começar a desenvolver minhas possibilidades físicas, ainda assim acreditava na viabilidade de jogar na seleção brasileira. Forcei a minha transferência de Ribeirão Preto para um grande centro—pois naquela época era extremamente difícil ser lembrado jogando em uma equipe do interior—e fui, mesmo que com imensas dificuldades, atrás dos meus objetivos. Demorou pouco mais de um ano para ser convocado pela primeira vez. Ainda que a convocação fosse por mim esperada, a sensação foi muito maior do que imaginara: uma verdadeira explosão de alegria e orgulho. Durante sete anos tive o privilégio e sempre o mesmo prazer de participar da nossa equipe. Ir a um mundial então, é de uma satisfação incomparável. Ainda mais que em minha primeira campanha fui designado como capitão do time. Sentia-me com uma responsabilidade absurda por estar representando não só meus companheiros, mas muito mais: era portador de uma representação de toda uma nação pois qualquer gesto em falso, eu estaria comprometendo a imagem de todos nós.
Hoje, não percebo a mesma receptividade. Talvez porque tenhamos sido, os das gerações anteriores, mais lúdicos e sonhadores. Fomos criados em uma situação social e política muito diferente. Nossas lutas passavam necessariamente pelas mudanças que pretendíamos para o nosso futebol e para o nosso país. E vestir a camisa amarela era a máxima expressão deste engajamento mesmo que a maioria jamais tenha se dado conta disso. Percebemos que agora há uma sentimento de compromisso puramente profissional quando da presença em campo. Existe um comprometimento menor com a paixão e a emoção do encantamento. Os objetivos são muito mais materiais que filosóficos. É sinal dos tempos. É óbvio que tenho claro que esta marca está sendo usada em demasia e sem o devido cuidado. Joga-se muito e contra qualquer um desde que se pague bem por uma apresentação da nossa seleção. Mas mesmo assim ainda é motivo de atração. O porém é que, nos dias de hoje, quando um atleta briga com seu clube para que possa servir a seleção outras questões estão em jogo. É que, como já dissemos no início, vestir a camisa da seleção é um passaporte quase garantido para uma transferência rentável para o exterior. E essa é a principal razão de se buscar estar presente nas convocações. Não recrimino quem quer que seja. É que alguns princípios ainda representam para mim valores especiais. De me arrepiar sempre que ouço e canto o hino nacional mesmo nas situações mais corriqueiras. E penso de como seria interessante se nossos craques, que são acompanhados por tanta gente, ainda sentissem paixão ao vestir a camisa da nossa seleção. Todos nós ficaríamos contaminados. Talvez seja ingenuidade, mas não custa nada sonhar.
Susto na estréia
E foi um sonho disputar duas copas do mundo-Espanha-82 e México-86. Logo na estréia, alguns fatos marcantes. O primeiro e mais assustador aconteceu com o nosso goleiro. Vida goleiro realmente não é fácil. A começar por sua origem. Na minha época de garoto, o menino que tivesse pouca habilidade com a bola, o que ainda hoje chamamos de grosso, era o último a ser escolhido para as peladas (babas), invariavelmente para ser o goleiro da equipe. Ficava assim a mercê dos chutes dos atacantes adversários e, pior, usava preferencialmente as mãos para jogar futebol o que, convenhamos, nunca foi o sonho de quem quer que um dia tenha chutado uma bola. Era a ralé da ralé. Hoje, parece que as coisas mudaram um pouco. Já possuímos inclusive goleiros artilheiros como Rogério do São Paulo que tem uma habilidade muito maior que vários dos brutamontes que infestam nossos gramados. O que não deixa de ser um absurdo no país do futebol. E o goleiro apresenta diversas particularidades. É o único que porta uma camisa diferente. É o que possui uma área delimitada para suas ações manuais. É aquele que onde se encontra a grama tem dificuldades de crescer. E é também o jogador com mais vocação para ser o culpado por uma derrota. Principalmente quando falha e sofre um gol incrível: o "frango". A primeira vez que ouvi esta expressão para explicar o grande martírio de um goleiro, fiquei pasmo. Mas isso me transportou imediatamente à imagem patética
de um iniciante tentando agarrar um galináceo nos terreiros da vida. Nada mais sugestiva que esta correlação. Acompanhar a reação do goleiro após a ocorrência de um frango é algo imperdível. Geralmente, logo depois que a bola lhe escapa das mãos e se dirige para o arco, ele se volta para ela como a implorar que um milagre aconteça e imagina que um atrito inesperado se interponha no caminho da esfera e a faça parar. Poderia ser uma poça d'água, um pedra ou um tufo de grama. Mas nada disso acontece e a reação do público o faz tentar esconder-se em si mesmo. Abaixa a cabeça, põe as mãos sobre o crânio e recolhe-se em uma posição fetal. E talvez seja isso mesmo que ele gostaria de retornar a ser naquele momento: um feto. Voltar à tranqüilidade do útero materno representaria o conforto que se procura resgatar. Mas tudo isso é fantasia e não há como fugir do fato. É necessário levantar a cabeça e tentar recuperar-se, mesmo que toda a confiança tenha se esvaído. Pois é, já vi grandes frangos. Alguns, bem no fundo do imaginário popular, inesquecíveis. Aquele nosso time de 82 é lembrado (e como!) até hoje como uma equipe de altíssima qualidade e muito do que conquistamos em relação às nossas carreiras devemos àquelas apresentações na Espanha, mas por causa do primeiro gol que tomamos na Copa a imagem que se tem do grande Waldir Perez— nosso goleiro—em nada condiz com aquilo que realizou em sua trajetória esportiva. O chute do atacante russo partiu de muito longe. Nem tão de longe quanto se poderia avaliar, mas o suficiente para que em um campeonato mundial, onde tudo é exagerado, todos tivessem a impressão que pudesse ter saído de um ponto próximo do infinito. A demora da chegada da bola às suas mãos dava a certeza que a defesa seria simples e fácil. Porém, o toque na grama poucos centímetros a sua frente a fez desviar de forma que caprichosamente ela passasse, sem ser molestada, à esquerda de suas mãos. Já dizia meu amigo Juninho Fonseca, reserva do Oscar nesta ocasião: goleiro careca nunca tem sorte. Isto nem sempre é verdadeiro, mas desta vez ele teve razão. E ele, Waldir, como se já soubesse a repercussão que o
fato teria em todo o planeta, rapidamente apontou o culpado— qualquer ponto à sua frente—e voltou a ocupar-se do seu ofício. Muito bem por sinal, pelo menos dali em diante. Mas ficou lembrado eternamente por este acidente que nada teve a ver com ele especificamente. E sim com falhas geográficas do campo de jogo. Os "frangos" em geral têm relação estreita com o inesperado ou o absurdo, porém a visão de quem está de fora é inclemente. Perdão, nem pensar. Para tentar evitar que tenham este desgosto, nossos goleiros têm que possuir agudo senso do perigo e absurda capacidade de cálculo para que estes erros capitais jamais aconteçam. O que, convenhamos, é impossível. De modo que, vivem eternamente na corda bamba.
Gol redentor
Aquela primeira partida da Copa de 82 ficou marcada para sempre em minha lembrança. Era a minha estréia em competições deste tipo e vocês podem imaginar como estava me sentindo. Depois de anos de expectativas e esforços para me aproximar do sonho de disputar um mundial, eu finalmente estava ali perfilado para cantar o hino
nacional brasileiro para o mundo todo ouvir: "ouviram do Ipiranga às margens plácidas, de um povo heróico o brado retumbante". E com a agravante de ser o capitão da equipe. Por aqui se dá muito pouco valor a esta instituição. Diz-se que serve apenas para realizar o sorteio para definir de que lado se jogará e quem dará o pontapé inicial. Já no exterior as pessoas reconhecem a verdadeira importância do cargo: a representação da equipe frente a todos os espectadores e ao árbitro. Vou mais longe: nas Copas também se representa a nação que se defende. O comportamento do capitão deve refletir as características de um povo quanto à sua cultura e desenvolvimento social. Que responsabilidade! Começo de partida. Nosso time ainda se adaptava com a ansiedade do primeiro jogo quando um acidente mudou o rumo da partida: a tal da falha do nosso goleiro. Não diria que tenha sido uma tragédia, mas que aquele fato inesperado mexeu com o emocional de muitos não tenho dúvidas. E é até natural que tenha sido assim. Quem já estava no limite por causa da estréia possuía pouca reserva psicológica para enfrentar o novo desafio. Procurei manter-me calmo e passar isso para os companheiros. Os mais experientes têm a obrigação de pensar o jogo de uma forma diferente e alheia ao resultado de momento. Só desta forma se consegue equilíbrio para resgatar o domínio da partida. Afinal, o futebol é mais que um jogo: é um combate emocional. Principalmente porque se trabalha na presença do público e este interfere profundamente no estado dos jogadores. Em pouco tempo, voltamos a jogar como estávamos habituados mesmo que a qualidade estivesse um pouco abaixo das nossas possibilidades. Mas parecia que nada dava certo. Tentávamos de tudo e nada de conseguirmos furar o forte bloqueio imposto pelos adversários. O pior é que eles possuíam um contra-ataque perigosíssimo e não poucas vezes estivemos em dificuldades defensivas. Terminamos o primeiro tempo desta forma: martelando, martelando e nada. No vestiário, além da substituição que Telê resolveu fazer, o fundamental foi conversar muito para que todos resgatassem a confiança. Não podíamos perdê-la, pois tínhamos
mais time ainda que o resultado fosse bastante incômodo. Voltamos a campo muito melhor: mais equilibrados taticamente, mais tranqüilos e jogando o que sabíamos. Mesmo assim tivemos muitos problemas. Houve até um pênalti que Luizinho cometeu e que felizmente passou despercebido pelo juiz. De qualquer forma, ainda que um outro gol surgisse, sentíamos que a vitória se aproximava. Mas estava demorando muito para chegarmos ao gol. O tempo parecia que voava em alta velocidade. E a torcida ia ficando cada vez mais nervosa. Foi quando recebi uma bola na intermediária a uns 20 metros da entrada da área. Depois de dominá-la, como sempre me voltei para o ataque em busca melhor opção de passe. Havia muita movimentação, mas ninguém estava livre o suficiente para receber a pelota. Fui avançando, estudando tudo o que se passava ao meu redor. Sofri o primeiro ataque defensivo. Desviei para a direita e o ultrapassei. A partir dali havia uma muralha humana a minha frente. Ameacei chutar e alguns se mexeram diante de mim para evitar a ação. Dei outro toque para a direita e aí, finalmente, abriu-se um claro bem de frente para o gol. Era ali ou nunca. Joguei toda a minha energia restante naquele chute. Acompanhando a trajetória acreditei que pudesse ser gol—e foi. Meu deus, que loucura, que alívio e que emoção. Explodi em gozo correndo e vibrando por todo o gramado. Estava eufórico. Para quem nem comemorava quando as coisas estavam péssimas, aquilo mais parecia o êxtase. O orgasmo sonhado.
Saudades da liberdade
Naquele instante, nem me lembrei do incomodo que estava sendo o longo período de preparação que havia se iniciado alguns meses antes e que nos privava do convívio com os amigos e a família. Aliás, esta tradição sempre foi o que mais me incomodou quando jogava. Quanto mais a sociedade se moderniza e quebram-se tabus, o futebol, parece, caminha para traz. Eu tinha apenas 14 anos quando os estudantes franceses tomaram as ruas de Paris para lutar por suas convicções. Aquelas manifestações tornaram-se um marco na história contemporânea da humanidade. Romperam-se dogmas e a filosofia que pregava a paz e o amor invadia cada canto de nossas mentes para nos mostrar a nova ordem. Fomos contaminados por aquela pregação simples e definitiva. Passamos a viver em harmonia com nossas características e a respeitar nosso ser. Todos os povos do mundo, de alguma forma, foram estimulados a rever seus conceitos. Nós, cá de baixo do equador, talvez tenhamos sido os mais entusiastas da nova idéia. Por nossa forma de encarar o mundo, por nossa cultura e pela miscigenação de raças que nos ofertaram uma capacidade de amar e uma libido incomparável, abraçamos plenamente a liberdade sem limites. Em plena adolescência, não podia ter sido mais contaminado. Apesar da minha timidez que insistia em atrapalhar meus planos mais íntimos, pude sentir intensamente a maravilha da libertação sexual desta geração. Nossos pais que haviam sido criados em uma situação diametralmente oposta nada puderam fazer contra aquela onda. Namorei a vontade, comecei a chegar cada vez mais tarde, freqüentava a festa que queria e mesmo com os inevitáveis confrontos de geração, pudemos resistir.
Seis anos depois – na época, parecia uma eternidade – cheguei ao meio do futebol. A primeira e definitiva instituição com que tomei contato foi com a famigerada "concentração". Era inacreditável que naqueles tempos tão "modernos" ainda se utilizasse tamanha aberração. No início, o isolamento compulsório, às vezes, ultrapassava 48 horas para cada jogo. Como fazíamos duas partidas por semana tínhamos menos tempo livre que os condenados em regime aberto. O pior é que ficávamos em uma casa apertada, cheia de beliches, literalmente uns em cima dos outros. De cara, passei a questionar aquela prática. Não podia entender como as razões de sua existência podiam ser tão frágeis. "Para que vocês não façam besteiras". Até parece! E o pior é que dentre estas besteiras incluíase o sexo. Ora, façam-me o favor. Desde quando o ato sexual atrapalha o quer que seja? Só se for na cabeça deles. Com o tempo consegui encurtar o absurdo. 24 horas no máximo. Ainda era muito. Como estava na faculdade, passei a me escalar nos plantões de sábado. Assim, não perdia o meu tempo. A pior coisa do mundo é a ociosidade. E isto é o que não falta num ambiente desses. Quando chegava do hospital da faculdade invariavelmente fazia um teste. Separava as páginas esportivas do meu jornal de todo o resto. A cobertura política, econômica, de variedades, de literatura e todas as outras nunca eram tocadas. Nunca mesmo. Ainda bem, pois assim podia usufruir o que me interessava com tranqüilidade. Também descobri que o que provoca o desatino de beber em demasia e da busca incessante por mulheres é exatamente esta prisão. Imediatamente após a libertação se quer fazer tudo o que não pôde ser feito. E isto, em poucas horas. É o resgate do tempo inutilizado. É a compensação. É uma forma de reagir. É a insubordinação. Um dia haveria de mudar aquilo. Não poderia me conformar. Chegando ao Corinthians, com a implantação da democracia corintiana, um dos assuntos que mais me interessava era a dita cuja. Puxa, mas a turma não queria mudar. Também, ela serve para protegê-los da opinião pública. Demoramos seis meses para torná-la opcional. A partir daí, foi demais. Ficávamos em casa, brincávamos
e educávamos nossos filhos, jantávamos com nossas famílias, comíamos o que estávamos habituados com o tempero que gostávamos, dormíamos com nossas mulheres, fazíamos sexo – por que não? – à noite e quase sempre pela manhã, tomávamos nosso café acompanhado de nosso jornal predileto, líamos um livro antes de ir para o hotel, chegávamos junto da família e íamos todos no ônibus para o estádio. Corríamos como crianças. Tínhamos prazer em jogar e em divertir nosso público. Era um tesão. Tesão em viver e trabalhar com liberdade. O resultado foi excepcional.
Festa no antidoping
Pior que este isolamento às vésperas das partidas só quando estávamos na seleção. Eram longos períodos principalmente quando dos mundiais. O longo retiro provocava muita irritação, mas pelo menos em uma ocasião durante o mundial de 82 pude fazer uma farra ainda que de uma forma diferente da que gostaria. E isso
aconteceu na terceira partida da competição. Parecia que iria ser um dia comum. Comum não seria bem a palavra correta—uma partida de Copa do Mundo nunca é comum. Mas, deveria ser algo mais tranqüilo, sem outras emoções que não as que já esperávamos. Afinal, já estávamos classificados. O adversário, a Nova Zelândia, era o time mais fraco da nossa chave. Nestas condições, seria uma boa oportunidade de relaxarmos um pouco afastando temporariamente as pressões naturais neste tipo de competição. Como nas duas ocasiões anteriores, saímos com relativa antecedência de nosso hotel (belíssimo, aliás) que estava um pouco distante do local das partidas. Durante o trajeto, o samba corria solto. Havia um ar de felicidade especial no ar. Todos estavam bem descontraídos e tive a certeza que faríamos um belo jogo. Gostava muito de ficar analisando o comportamento dos companheiros nos momentos que antecediam ao início da partida. Quase sempre a intuição nascida destas observações era confirmada depois. Finalmente, chegamos. Uma multidão de brasileiros nos acolheu à porta do estádio. Aparentemente havia muito mais gente que nos jogos anteriores. Gente nossa, é claro. O brilho no olhar de cada um nos oferecia mais e mais confiança. Adentramos os vestiários a nós dedicados. Enquanto nos trocávamos, acompanhávamos o burburinho, abafado pelas paredes, que vinha do público. Na hora de entrar em campo, apareceu um pouco do nervosismo latente—fiquei com o corpo todo arrepiado. É sempre uma honra vestir aquela camisa. Como capitão, ia à frente. Era o primeiro a sentir as reações do povão que nos acompanhava. Foi um delírio. Postamo-nos para as execuções dos hinos nacionais. De repente, lá no meio da solenidade, percebi que havia algo diferente. Um som mais nítido e mais próximo. Olhei para cima e procurei a sua origem. Bem à minha esquerda, um grupo uniformizado, em pé, portava seus instrumentos e a plenos pulmões acompanhava os acordes registrados em disco. Parecia uma sinfônica a exaltar nosso hino. Ao final, foram aplaudidos por todo o estádio. E por nós também. Durante o transcorrer da partida, eles tocaram muitas de nossas músicas. Aquarela do Brasil foi uma das que pude apreciar quando o
jogo se interrompeu provisoriamente. Acompanhando esta pérola do compositor Ari Barroso apareceu uma pipa enorme voando por cima de todos nós jogadores. Ela fazia curvas para um lado e para outro, mergulhava verso o gramado e voltava a ganhar altura, flutuava por instantes e novamente se aproximava do chão. Por vários minutos aquele espetáculo de habilidade e de beleza enfeitou ainda mais o evento. No campo, dávamos um passeio nos adversários. Jogamos um futebol de altíssima qualidade e vencemos por goleada: 4×1. Ao final daquela partida saí extasiado com tudo que havia presenciado e pelo que o time jogou. Estava plenamente satisfeito. Mal sabia que muitas outras surpresas ainda haveriam de aparecer. Já me dirigia para o banho, quando o grande Nocaute Jack, nosso massagista, veio com a notícia de que havia sido sorteado para o antidoping. Legal, quem sabe não sobra uma cervejinha, pensei. Depois de meses de preparação na Toca da Raposa em Belo Horizonte e duas semanas em Portugal com raríssimos dias de folga, eu estava numa secura de dar dó. Troquei-me rapidamente e corri para a sala designada. Sabia que demoraria bastante, pois sempre perdi muito líquido nas partidas e ali estava um calor de matar. Éramos quatro. Perguntaram-me o que gostaria de beber. A velha e boa ceva, claro. Quando o cara abriu a geladeira, tentei disfarçar o sorriso. Estava entulhada de tudo que é tipo de bebida. Uma beleza! Tomava a minha segunda latinha quando percebi que os outros já haviam terminado a missão. E eu, sem nenhuma vontade. Na verdade, não queria que aquilo terminasse nunca. Acabei como estoque de cerveja e passei para o champanhe. E nada. Vinho, nada. Refrigerante, nada. Só quase 3 horas depois, consegui colher o material. Quando saí do estádio, ninguém mais do time me esperava, mas eu era o mais feliz dos homens. Estava em êxtase. Foi um dos melhores dias de minha vida.
Quase fora da Copa.
Depois desta primeira experiência em campeonatos mundiais, onde me preocupei exclusivamente com as questões relacionadas ao jogo propriamente dito e suas variantes psicológicas, físicas e técnicas, nem pensava mais em participar de outra Copa. Achava que aquela oportunidade já tinha sido o bastante e que muitos outros deveriam ter a mesma chance. Encontrava-me em uma idade relativamente avançada para competir (velho de 30 anos é demais; coisas do esporte) com os mais jovens e comecei a apresentar no intervalo entre as duas competições uma série de lesões que me tiraram dos gramados por alguns períodos. Além disso, as mudanças de treinador no comando da nacional eram uma constante e não existia uma linha sendo seguida. Enquanto isso, o velho e bom Telê era esquecido no seu canto. Um dos treinadores da época, inclusive, rejeitava todo e qualquer jogador que estivesse atuando na Europa como se fossemos um perigo para a saúde pública —já pensou nosso time hoje sem Ronaldo, Roberto Carlos, Ronaldo gaúcho, Kaká e outros mais? Seria uma beleza,não acham! Ora vejam vocês: ser excluído de uma seleção nacional por ter se destacado e chamado a atenção dos grandes clubes de fora. E olhe que naquele tempo o único mercado interessante era o italiano onde só podiam jogar dois estrangeiros por equipe. É, Zico, Falcão, Cerezo, Junior e outros mais, a fina flor do que tínhamos de melhor, já não serviam para defender a camisa amarela. Saímos do mundial da Espanha como o grande time da época e alguns anos depois, éramos discriminados e rejeitados. Mas tudo bem, nem sempre podemos agradar a gregos e a troianos. Talvez a razão disso tudo
fosse a tentativa de provar que aquilo que aconteceu naquele mundial era pura besteira. Que o bom é ser diferente. Pelo menos daquilo que comoveu a todos e a todo mundo. Mas a falta de bons resultados e certa confusão interna que levou até a uma desgastante manifestação contra a imprensa provocaram a volta de Telê Santana ao comando da seleção às vésperas das eliminatórias em 85. Quando da sua primeira lista de convocados, eu estava chegando à Florença depois de alguns dias no Brasil. Somente ao chegar em casa é que fiquei sabendo que deveria retornar ao Brasil. Dois vôos intercontinentais sem descanso não é pouca coisa, mas estava muito feliz. Reencontrar tantos e grandes amigos é sempre uma sensação única, principalmente para uma missão tão especial. Disputamos a etapa classificatória contra Paraguai e Bolívia e conquistamos a vaga com certa folga. Com direito a Maracanã lotado no dia do jogo decisivo.
Passado o ano na Itália, retornei ao meu país para jogar no Flamengo. Era uma oportunidade especial porque teria a chance de jogar com alguns dos maiores jogadores brasileiros da época como Andrade, Adílio, Mozer, Bebeto e Zico que também estava retornando de lá. A equipe mantinha praticamente a mesma base que havia sido campeã mundial interclubes pouco tempo antes. Aliás, ter o prazer de atuar ao lado de Zico sempre foi algo maravilhoso nos anos em que defendemos a seleção brasileira. Agora no clube, teríamos a possibilidade de construir muita coisa juntos. Pelo menos era o que eu imaginava. Infelizmente as coisas não andaram tão bem para o nosso lado. Quando cheguei, ele estava se recuperando de uma grave contusão no joelho que o levara a uma delicada cirurgia. Eu, por outro lado, às vésperas de minha estréia, logo na primeira semana de Rio de Janeiro, fraturei a tíbia direita e me vi impossibilitado de jogar por muitos meses. Aquele resto de ano estava perdido para nós dois. Eu com a perna direita engessada até o joelho e ele, como um leão, lutando para reabilitar a musculatura
afetada e a articulação operada. Quando nos encontrávamos, parecíamos mutilados de guerra. Voltamos as atividades somente no início do ano seguinte (1986). Na primeira partida do campeonato carioca daquele ano enfrentamos logo de cara uma parada duríssima: um clássico contra o Fluminense. Foi a primeira vez que vesti o manto rubro-negro no Maracanã o que produziu um turbilhão de emoções. Mais de cem mil espectadores se fizeram presentes. E foi uma festa. Nosso time jogou muito e vencemos de goleada com três gols do galinho como ele era conhecido. Mal sabia que aquele seria o único jogo que dividiríamos juntos o carinho da torcida flamenguista no maior estádio do Brasil. Logo em seguida nos apresentamos à seleção para os preparativos para a Copa do Mundo no México. Fomos para Belo Horizonte onde permanecemos em treinamento durante os meses seguintes até a viagem para o México no final de maio. Zico continuava a sua cruzada em busca da plena recuperação. Passava horas do dia fazendo toda sorte de exercícios para reforçar a musculatura que insistia em se manter atrofiada. Eu, nas primeiras semanas, sentia-me bem e animado, mas de uma hora para outra uma dor muscular passou a me incomodar—a mesma lesão que tive na pré-temporada italiana em 84 e que me impediu de me preparar melhor para a minha aventura européia. Não era de grande intensidade porém me limitava terrivelmente. O pior é que não conseguíamos descobrir exatamente o ponto doloroso para eventualmente realizarmos uma ação mais agressiva no tratamento. Convivi com ela quase todo o período em que permanecemos em treinamento, acabei perdendo o meu lugar no time e achei até que nem ao México iria pois não estava conseguindo jogar adequadamente. Não deve ter sido fácil para o Telê Santana, nosso técnico, optar por nos manter no grupo que disputaria a Copa. Afinal, estávamos longe da nossa forma física ideal. Felizmente para nó, ele apostou na nossa recuperação. Tínhamos somente três semanas para o início da competição. Já na cidade do México percebo que a lesão na minha coxa milagrosamente se torna clara e então consigo me livrar dela.
Com a vontade que estava não foi muito difícil resgatar meu lugar no time. Zico, no entanto, mesmo com todo o esforço despendido não pôde provar para o treinador que podia suportar os dois tempos de um jogo e acabou ficando na reserva. Vocês não imaginam como ele ficou bravo. O homem queria jogar de qualquer jeito e nunca entendeu a posição do Telê mesmo que jamais tenha se manifestado desta forma sobre o assunto.
Falha lamentável
Quando chegamos ao México, a catástrofe provocada por um terrível terremoto que atingiu a população mexicana poucos dias antes do início do mundial foi o estopim de uma decisão que tomei: aproveitar a ocasião em que o mundo todo está de olhos voltados para o evento e colocar alguns pontos críticos da realidade social em discussão. Mais ou menos como se faz em determinados eventos esportivos ao se propor uma trégua nos conflitos armados durante o período dos jogos. É claro que ninguém jamais imaginou que isso possa de fato acontecer, pelo menos em larga escala, mas só o fato de se colocar na mesa as polêmicas contemporâneas já é um bom motivo para esperar que o número delas diminua. Pois é, tudo definido, só faltava encontrar a forma. Foi em uma ingênua garotinha que portava uma tiara graciosa em um programa de TV que me veio a resposta. Imediatamente procurei alguém que pudesse confeccionar uma faixa para cada jogo e, pior, em tempo recorde— faltava menos de uma semana para o início do mundial. Felizmente tudo deu certo e na estréia lá estava eu com os dizeres
contra os absurdos que existem na humanidade em minha testa. Era para ser um choque, mas uma distração banal estragou o barulho que imaginava fazer: tocaram o Hino à Bandeira em vez do Hino Nacional na nossa partida de abertura. As reações contra a miséria, as guerras, ao imperialismo, à injustiça social, ao analfabetismo endêmico e outras tantas deram vez à recusa, determinada por um movimento negativo da minha cabeça ao ouvir o primeiro acorde, de ouvir este erro na execução de um dos nossos principais símbolos. Mas valeu a tentativa. É muito melhor, acredito até hoje, do que o conformismo.
UM MUNDO DE DIVERSIDADE, IRREAL E PERIGOSO
O observador mudo
Na verdade, qualquer espetáculo futebolístico tem o seu fascínio— seja qual for a sua importância—e envolve vários sentimentos e um sem número de pessoas cada qual na sua função. As estrelas do espetáculo são as últimas a surgirem no palco armado. Até a sua
entrada em campo, muitas coisas acontecem e se fossemos a boca do túnel dos vestiários teríamos uma visão privilegiada do que ocorre até instantes antes das partidas. A entrada dos vestiários se destaca por sua profundidade, suas formas geométricas e por sua discrição. Durante todo o dia, acompanhando os preparativos para o grande evento, ela se mantém distante do burburinho. Os trabalhadores que cuidam do gramado, da marcação das divisórias e da colocação das redes nas traves, pouco se dão conta de sua presença. Escolhem outra via para o vai e vir incansável. A tranqüilidade, então, impera ao seu redor. Antes do entardecer, ela recebe alguns retoques em suas laterais. São ações que visam melhorar seu visual. Quase como a maquiagem que as grandes estrelas recebem antes de subir ao palco. Quem estiver a seu lado poderá, eventualmente, perceber uma melhora em seu humor como se estivesse sorrindo a todos. Pouco a pouco vão chegando os profissionais da mídia que iniciam o delicado trabalho de montar os meios de comunicação entre o local do espetáculo preste a se iniciar e o mundo exterior. Quase todos passam por ela sem nem mesmo se dar conta de sua importância. Encontram-se muito ocupados com suas atribuições para se dar ao luxo de reverenciar sua utilidade. Naquele momento, ela nada mais é que uma operária a auxiliar o trabalho dos técnicos. O público, enfim, começa a chegar e ocupar seus assentos. Naquelas poucas horas antes da partida, a preocupação dos espectadores é com a discussão das possibilidades de cada equipe e a busca de uma melhor localização para assistir o espetáculo. Ela ainda é pouco notada. Porém, qualquer movimento que ocorre ao seu redor é imediatamente acompanhado por todos. Como se naquela imensidão de palco, ela fosse a atriz principal. Pelo menos, naqueles esporádicos instantes. Gradativamente, todos os lugares vão sendo tomados. O colorido e o fervor das arquibancadas contrasta bem com sua postura discreta. Com o se aproximar do horário do jogo, ela passa a ficar inquieta. Muita gente já se acotovela em suas paredes. Microfones, fios e antenas se concentram ao seu redor. Já não pode estar tranqüila. Sua
privacidade foi para o espaço. E aí, chegam os jogadores. Um a um passam por ela para sentir o clima e analisar o gramado. Alguns, como por timidez, preferem ficar ao seu lado, só captando a energia que emana da multidão. Neste momento, ela se sente a mais importante de todas as estruturas presentes. Um ninho a acariciar aqueles jovens que em menos de uma hora serão jogados aos leões. Um porto seguro. Logo após, todos voltam aos vestiários. Local que ela zela com cuidado. Entre este momento e o início da partida, sente a imensa diferença que existe entre os dois mundos. Lá fora, milhares de pessoas a produzir uma festa magnífica. Cantos, os mais variados, ecoam no estádio. Fogos iluminam ainda mais os céus daquele espaço. O sorriso está instalado no rosto de todos os presentes e a alegria é esbanjada em toda a sua plenitude. Lá dentro, no entanto, o clima é de ansiedade. Mãos úmidas somam-se ao silêncio sepulcral que nasce da concentração dos atletas para a partida decisiva. Todos os sentimentos que geram insegurança estão presentes em cada um deles. Calados, aprontam-se para mais um desafio, mais uma batalha. Muitos, enquanto aguardam a hora de se dirigir ao campo de jogo, preferem deitar-se nos bancos frios e, mantendo-se distantes, tentam encontrar forças no fundo da alma. Começa o aquecimento dos corpos. O silêncio é interrompido por gritos evocando numerais que ajudam a espantar o medo. O coletivo começa a suplantar as dúvidas individuais. A confiança reaparece e a adrenalina surge para fortalecer a todos. Enquanto os rostos suados dos jogadores agora se aproximam em círculo para as últimas lembranças do técnico, o fervor das arquibancadas chega ao seu ápice. A espera torna-se insuportável e a maioria clama por suas equipes. Os times dirigem-se para o gramado. Ainda há um bom caminho a percorrer. Neste intervalo, reúnem-se novamente para unificar as energias. Abraçam-se e se unem. Não há mais volta. Sobem as escadas para se apresentar ao público. Delírio total. Todo mundo que até então os aguardava, afasta-se da boca do túnel. Ela se torna apenas uma peça decorativa e triste. Ninguém mais lhe dá atenção. O foco, agora, é outro. Até que o próximo jogo aconteça.
Nos braços do povo
Já nós, agentes do espetáculo, estamos apenas começando a sofrer ou a vibrar com as expectativas geradas pela massa que se apresenta nas arquibancadas. Eu tive o privilégio de jogar nos times mais populares do meu país. E foi muito bom. No Flamengo tive uma passagem curta, porém interessante. Mas o que mais me tocou—até porque lá passei muito tempo—foi jogar no Corinthians. Costumo dizer que algumas coisas na vida, antes mesmo de se tornarem inesquecíveis, são imperdíveis. Jogar no Corinthians é uma delas. E é incomparável. Quando se vence uma partida é como se todos os males tivessem sido curados; quando se perde, no entanto, é como se uma bomba explodisse sobre nossas cabeças. A presença da fiel torcida corintiana na vida de quem lá se encontra é mais notada que a dos parentes mais próximos. É como se ela se investisse de um poder absoluto para controlar todos os passos de seus jogadores. E há certa lógica neste tipo de relação. Afinal, todos eles são vistos como filhos. Acarinhados por bom comportamento e repreendidos firmemente quando não respondem às expectativas. Sempre e muito de perto. Na minha época era comum termos duas, três, cinco mil pessoas acompanhando um simples treino da equipe. Para entrar e
sair do clube, nós demorávamos uma eternidade atendendo o carinho e a atenção de tanta gente. Não eram apenas torcedores a cuidar dos seus ídolos, mas tutores a responder por suas obrigações. E quando é véspera de decisão de campeonato? Meu deus do céu, aquilo vira uma loucura como se fosse o dia do casamento da única filha: aquele monte de pessoas com o olhar apaixonado, os olhos lacrimejando de emoção e a felicidade absolutamente sem controle. E esta paixão não encontra limites. As horas que antecedem uma partida decisiva são de puro nervosismo. Parece que o tempo não passa. A adrenalina já a flor da pele e ainda longe do campo de jogo. Quando finalmente todos se acomodam para, enfim, rumar para a arena é um alívio. Normalmente a massa corintiana acompanha histérica o trajeto até o estádio. Milhares de bandeiras emolduram os rostos dos torcedores vibrando nas calçadas. Quanto mais perto, mais gente. Um mundo de gente. Os alvinegros não se preocupam muito com o adversário. Como se só um time participasse da decisão. O sentimento de vitória inevitavelmente está presente. No funil da aproximação ao local do jogo é quase impossível andar. O veículo do clube só consegue se aproximar por culpa dos batedores. Mesmo assim é muito difícil. Em uma dessas ocasiões, em 1983, tivemos que deixar o ônibus em disparada, caminhando na multidão, pois perdemos tanto tempo no trânsito que, em cima da hora, ainda tínhamos mais de 500 metros até o estádio. Pegamos nossos uniformes, colocamos nas costas e saímos abrindo passagem por aquela pororoca de gente. Quando os torcedores perceberam nossa presença e a razão da correria imediatamente abriram um corredor para que chegássemos aos vestiários. Mais ou menos como a abertura das águas do Mar Vermelho a pedido de Moisés para a passagem dos peregrinos rumo à terra prometida. Esta foi uma das mais belas interações que tivemos com a torcida. Sentir aquele clima, aquela energia, foi demais. Principalmente por que ainda não estávamos em campo. Insuperável! Além de tudo, conquistamos o título. Ser campeão no Corinthians é usufruir a mais profunda alegria. É desencadear uma confusão de enzimas e hormônios que alteram por
completo nosso estado. É o máximo. Um prêmio que deve ser guardado da forma mais cuidadosa possível no fundo da alma. Que me desculpem os torcedores de outros time, mas é diferente jogar no timão. Muito diferente. Se o gol representa o orgasmo do futebol— disse-o muito bem quem proclamou–, no Corinthians é um orgasmo múltiplo. Numa final de campeonato, então, nem se fala. Nosso amigo José de Aquino, assessor de imprensa no período da democracia corintiana, dizia que todo time tem uma torcida; no Corinthians, a torcida é que tem um time. Eu diria que jogar ali é viver o próprio pecado original.
A dor da derrota
Mas, nem só de flores vive quem se arrisca neste meio. Uma derrota em decisão dói, mas dói muito mais do que se imagina. E a dor se inicia ainda dentro da arena quando saímos de campo. Sentado num banco qualquer do vestuário parece que a vida se nega
a passar. Apesar do movimento, ainda que triste, que nos cerca, há como que um bloqueio instantâneo na memória e na percepção. Lentamente começamos a retirar do corpo as vestes que nos acompanharam naqueles 90 minutos de jogo. Sujas e desconjuntadas, parecem trapos. Eu mesmo sempre me senti um farrapo- se é que podia me considerar alguma coisa naquele momento. A fronte caída e os braços arqueados desnudavam liminarmente o estado de espírito. Encaminho-me ao chuveiro para, quem sabe, extirpar o dissabor instalado. A água gelada não produz grandes transformações. Pouco a pouco o silêncio se instala. Olho para os lados e vejo ninguém. Todos haviam se retirado sorrateiramente como a esconder certa vergonha e incompetência. Vestindo-me, relembro eventos anteriores de extrema felicidade e prazer. O contraste piora ainda mais o meu humor. Reflito sobre as incongruências que o cotidiano nos oferece com incômoda freqüência. Avaliações insanas e obcecadas. Num dia somos deuses do Olimpo e Eros é perene a nosso lado. Já no outro nos tornamos pessoas vis e descartáveis. É muita incoerência a nos desafiar. A nos tocar fundo na alma e mexer com nossos mais escondidos sentimentos. É como se nos descobrissem inevitavelmente. Uma estranha invasão. Que nos provoca, fere e mata um pouco a cada segundo. Mas é de uma riqueza tão profunda quanto dolorida. No caminho de casa tento esquecer os fatos recentes. Impossível. Aquela bola que cruzei poderia ter sido mais lenta, mais à frente ou um pouco mais alta. Facilitaria a conclusão. Meneio a cabeça. Não há como modificar o que se passou. Volto à realidade. Porta de casa, passos largos—enfim no meu abrigo. Ele há de me proteger, saciar e aliviar. Procuro por companhia e nada. A solidão talvez seja a melhor companheira neste instante. Estatelo-me no sofá. Bebo alguma coisa que relaxe, me envolva e devolva o bem estar perdido. O líquido rarefeito invade a garganta com sofreguidão. Não me seduz. Esqueço-o. Aquele lançamento no contra-ataque que tinha tudo para ser certeiro desviou na zaga. Centímetros à direita ou à esquerda possibilitariam a perfeição. Um erro, um único erro que
poderia ter sido evitado. Sem ele teríamos tido mais chances e a derrota talvez não acontecesse. E eu não estaria deste jeito. Doces sonhos! Corro em busca de uma música que acalme e me encante. Infelizmente me sinto mais triste. Uma convulsão sentimental ataca e expele algumas lágrimas fugidias que escorrem por meu rosto cansado. Aquela falta batida na intermediária tinha o destino certo. Deveria cair à frente do goleiro e escorregar por baixo de seu corpo. Sairíamos ganhando e nada nos tiraria a vitória. Puro devaneio! Estou arrasado. Mesmo com todo o esforço despendido, entregandome às últimas conseqüências, sinto-me um nada, um zero à esquerda. É como se me tivessem tirado a consciência. Não consigo articular sequer um raciocínio lógico. O vazio cerebral se instalou de forma absoluta. Pego um livro e não consigo construir suas imagens. Nada me consegue seduzir. Resolvo tentar dormir. Vagarosamente me encaminho para o leito. Deito-me. Fecho os olhos mas as imagens não se afastam nem por um instante. Corroem-me por dentro. Vejo, como se fosse real, um cruzamento vindo da direita. O jogo ainda estava empatado. A bola vem limpa. Mato no peito ainda fora da área, driblo o primeiro zagueiro que se aproxima, coloco no meio das pernas do segundo e me vejo cara a cara com o goleiro. A multidão se levanta e grita. Uma onda de otimismo invade meu ser. Escolho o canto. Desloco o arqueiro para um lado e toco mansamente para o outro. Neste momento—por incrível que possa parecer é sempre assim–, um barulho ensurdecedor de um caminhão de lixo na minha porta, me desperta. Suado, agitado e assustado, eu me vejo. E tento recuperar o gol que permaneceu no sonho interrompido. Que nada! Ele nunca existiu. Só na vontade louca de modificar o que se passou. Irresponsavelmente tento voltar a dormir. Impossível. É mais uma noite de derrota que é infinita até a próxima vitória.
Emoções à flor da pele
O lado positivo é que a vitória pode vir logo após, uma semana depois. E quando acontece, gera uma conflitante história sentimental. Principalmente quando estamos decidindo uma final de copa. Duas partidas, duas realidades que podem ser diametralmente opostas. Em uma oportunidade vivi exatamente isso. No primeiro domingo, a derrota. Era como se o mundo houvesse desabado sobre mim. Tentei reerguer-me, não podia—as pernas não respondiam. Olhei para o céu em busca de ajuda divina. Pesadelo? Não, era real. Tristemente real. Cabisbaixo enfrentei a fúria, a fera, o fato. Nada mais valia. Nada mais seria. Um arrepio de solidão aumentou a pressão. Sem ação, sem alento, sonolento. Só queria sair, sumir, sentir alguma coisa diferente— semente, gestante, nascente. O gramado que me acolhia e sorria, sumiu na escuridão do meu olhar. Calei-me. Encolhi-me. Colar os pedaços estilhaçados era urgente. Mas, em que paz? Meu lado mais sombrio, superficial, instinto animal, animalesca figura fulgurante reapareceu. A cruz do fato levou à tristeza toda minha pretensa beleza, realeza e pureza. Quem dera, pudera, voltar atrás. Alijar-me dos bestais acontecimentos de há pouco. Minha alma se desfez na relva, perdido na selva da impotência que vez em quando nos mata. A manta se rompera. Desapareça espinho que me perfura, se tanto.
Destruído, aniquilado, matado, agora era só um caco de quem se imaginara marca, tarde, norte. Despojei-me de tudo. Do simples e do nobre. Estava estilhaçado, rasgado e doído. Moí as entranhas, tentei resgatar façanhas perdidas ou miragens selvagens. Encontrei somente cantigas. Só resto restara pisado no chão. Sem pressa, pensei com pena de mim. No domingo seguinte, parece que uma mão então se cai em torno da alma me acalma e sorri. Apóio e levanto. Mas ainda estou sem teto com um peso que tenta vergar. É medo da queda. É vela demais em mar agitado. É certo que espero, não nego, a calma voltar. Sem dúvida há luta na alma. Sem trauma procuro fazer carinhosamente a bola rolar. E assim se fez novamente, ardente um novo sonhar. O luar a sondar um velho momento que custa a voltar. É falta, é grave, é perto, tenho que realizar. Corri sem perder a mira, atiro e afirmo no pé a fé que soube esperar. É belo, é forte, o vento da sorte se apresentou. É gol, é choro, é coro. Lembrança distante agora esperança que faz recordar. Neste momento exulto. A massa a me aplaudir, sentir, pulsar. Delírio esquisito diferente daquilo que me fez chorar. Decerto que há sempre um dia atrás do outro como há o nada antes de tudo. A melancolia envolvida na desgraça é semelhante a da perda de quem se quer, se ama, se beija. A alegria que contrasta com a derrota nos empurra morro acima com uma força de mil cavalos alados. É dia, é noite. É sorrir, é pular, é calar a repugnante reação de quem não nos quer ouvir, sentir, chorar. É dor que explode dentro do peito com a energia de duas Hiroshimas concomitantes. É o amar mais sentido, mais sensível, mais saudoso. É uma angústia inexplicável que nos corrói, limita, instiga. Felizmente para cada cara há uma coroa que nos acaricia, acolhe, envolve. Isso tudo em poucos dias. E quando acontece é simplesmente o máximo da emoção que possa ser vivida pelo homem. Felizmente, eu vivi.
Após a retirada
Mas, tive que me preparar para o final. A realidade é dura para quem pratica qualquer tipo de esporte: um dia devemos nos afastar e temos que estar preparados para isto. Quando, há algum tempo, Maradona passou por delicados problemas de saúde, pudemos acompanhar milhares de manifestações de solidariedade para com ele. Flores, recados, poemas, solidariedade, choros, velas, orações e respeito. Um povo se comovendo com a sua luta contra a morte e a fragilidade física e emocional, colocou-se na frente de batalha para ajudá-lo a reerguer-se. É interessante perceber que estas demonstrações de puro encantamento sejam tão raras aqui no Brasil. Com poucas exceções—e sempre relacionadas com tragédias inesperadas—como na morte de Ayrton Senna e de outras figuras que em determinado momento representavam a possibilidade de realização de sonhos comuns, como o primeiro presidente civil após a derrocada do regime militar, Tancredo Neves, que faleceu antes da posse—não percebemos a mesma cumplicidade para com nossos
ídolos. Pelé é um bom exemplo de quão distantes estamos daqueles que nos representam. Na verdade, não possuímos a paixão por estas figuras populares. Só mesmo em caso de um acidente de proporções gigantescas é que nos mobilizamos para cultuá-los. Ou, quando é o caso, se o personagem é realmente representativo do que esperamos deles. Aí sim nos sentimos próximos e existe uma identidade a nos aproximar. Mas, geralmente de maneira humana e realista e quase nada de veneração. Porém, se tivéssemos estas características em nosso genoma, nós teríamos muitas dificuldades para expressar toda a nossa dor quando ídolos do nosso futebol passassem por dificuldades. É que este fato é tão presente e corriqueiro em nosso cotidiano que não possuiríamos tempo, velas ou lágrimas para cuidar deles todos. Felizmente nossos conterrâneos são muito mais resistentes às agressões que sofrem em suas trôpegas vidas. Talvez porque sejamos mais pobres e menos protegidos—mesmo que isto tenha se tornado algo mais presente em outras sociedades mais tradicionais nos últimos anos. Imaginem um campeão do mundo em 70. Sendo portadores de imunidade absoluta no imaginário popular daqueles dias que sucederam a bela conquista, eles foram tratados como heróis. Vestidos a rigor com becas recém saídas das pranchetas inovadoras de nossos principais alfaiates, eles foram recebidos com pompa pelas autoridades e desfilaram para seus súditos por todas as principais avenidas do país. Mas aquele sonho tinha data e hora para terminar. E não demorou quase nada. Hoje, muitos deles têm dificuldades de acesso aos bens mais simples e necessários para uma vida digna. Alguns sobrevivem com um mísero salário mínimo. Como é que uma pessoa como esta que já beijou as mãos mais importantes deste país, consegue conviver com nossa impressionante incapacidade de inclusão social. Principalmente para quem foi rei, ainda que por um dia, é impossível entender as reviravoltas da existência. Quando lá atrás as portas estavam sempre abertas, usufruiu sofregamente daqueles momentos mágicos. Agora, no entanto, elas se fecham implacavelmente. E não há nada que as faça reabrir. Só resta a rua e a solidão. E é esta que destrói. Muito mais que a miséria e a
opressão. Quem foi habituado a conviver com tanta gente a seu lado—a lhe adular, a lhe envolver e a lhe enfeitar—tem imensas dificuldades de reconstruir sua rede social. Principalmente quando inadvertidamente permitiu que esta relação virtual se tornasse a única referência. Quando vestiu de forma absoluta a coroa do personagem que representou, não conseguiu mais se desvencilhar de suas armadilhas. Este personagem, o mais das vezes, é especial e intocável. Não tem defeitos, só qualidades. É belo, charmoso, carinhoso, amigo, desejável e, principalmente, rentável. Tê-lo ao lado representa certo tipo de poder para quem o cerca. Mas também é descartável. Quando ele deixa os palcos da vida, perde muito do seu encanto. Perde o seu carisma. Deixa de ser interessante. E, rapidamente, é sucedido por um mais novo e mais forte. É uma morte prematura, eu sei, mas impossível de ser postergada. E esta morte dói no fundo da alma de quem o carregou por tantos anos e a ele deve as facilidades e as falsas convicções. É o que podemos chamar de dependência. Como todas as outras, extremamente difícil de libertar. Resta, no entanto, sempre um pouco de dignidade. E a isso devemos absoluto respeito.
Vida virtual
A vida que o sucesso e a popularidade nos oferecem é cheia de particularidades interessantes. Somos tratados como indivíduos especiais e únicos e os privilégios são espantosos. E isso geralmente
nos encanta de tal forma que se torna difícil manter a razão. Mas não se pode perdê-la em hipótese alguma, pois as conseqüências são imprevisíveis. Durante o auge da minha popularidade como jogador de futebol, eu era convidado de uma das mais elegantes casas noturnas de São Paulo. De vez em quando, até por curiosidade para conhecer pessoas mais exigentes e sofisticadas no trato social, eu aparecia por lá dirigindo o meu pequeno Fiat verde—que, aliás, jamais se sentiu intimidado pelas Mercedes e BMW que invariavelmente embelezavam o ambiente–, e passava horas me divertindo por lá. Em pouco tempo, já conhecia todos que ali trabalhavam e me sentia em casa, ainda que os tipos que freqüentavam a casa não fossem exatamente aqueles que me fascina conviver. Mas, havia suas atrações. Mulheres belíssimas que nos faziam babar ao vê-las desfilar à nossa frente, shows musicais de qualidade e uma cerveja gelada ao gosto deste freguês. Isto perdurou por longos anos até que um dia recebi pela primeira vez uma conta a pagar. Neste momento, ficou claro para mim que o personagem que encarnava já não era tão interessante para aquela casa e nunca mais retornei. Até porque aquele não era um local de minha eleição além de ser extremamente caro para as minhas posses. Não tive nenhum problema com a repentina auto-exclusão de um ambiente que de alguma forma fez parte da minha vida por muito tempo porque sempre tive claro que o convidado em questão não era o ser humano que sou e sim a personalidade que todos conheciam dos campos de futebol, da televisão e dos jornais e das revistas. Um personagem que um dia iria morrer—como de fato aconteceu. Reconhecer as diferenças fundamentais entre o que é real ou virtual nestas histórias que envolvem atividades populares é de fundamental importância para a sobrevida posterior de quem atinge este estágio. Atores, cantores, jogadores de futebol e outros são como entidades tratadas de acordo com a sua influencia dentro da sociedade. Quanto mais aparecem, mais são valorizados. Quando por acaso desaparecem da mídia por qualquer motivo, tornam-se quase desconhecidos—o que geralmente provoca imensos traumas na personalidade destes indivíduos caso não tenham a consciência de
que muita coisa ali jamais foi real. Todos passam por isso, mas muito pior é o caso dos atletas que inexoravelmente devem deixar a sua atividade por culpa da gradativa incapacidade física que limita as suas potencialidades. O desemprego é um dos grandes males dos tempos modernos e uma das maiores preocupações das sociedades contemporâneas, mas muito mais doloroso que perder o emprego é perder a profissão. O desempregado tem uma qualificação que o credencia a retornar mais cedo ou mais tarde ao mercado de trabalho. Porém, no caso do jogador de futebol, ele não tem alternativa: tem que procurar uma nova profissão para que possa se re-inserir na mesma sociedade. Já não tão jovem e com responsabilidades sociais definidas, nunca é fácil recomeçar. Principalmente no caso dos brasileiros que quase sempre não possuem uma formação adequada muito menos qualificação em outra área. Eu, mesmo tendo me preocupado exaustivamente em me preparar para este momento, tendo um diploma de médico e providenciado um salário extra—um dos meus patrocinadores de então assumiu, desde o primeira relação contratual, que ele deveria me pagar o mesmo salário por mais dois anos após deixar o futebol para que eu pudesse me re-qualificar profissionalmente—, tive muito problemas. É que a rotina de trabalho, de laços familiares e de todo o resto têm que necessariamente ser modificadas. Tudo, desde o horário de trabalho até o dia de lazer. Além, é claro, começar tudo de novo para conquistar um espaço neste mundo absolutamente competitivo. Consegui sobreviver, mas quantos permanecem ainda em busca de uma resposta para suas necessidades? É muito triste perceber que tantos que um dia foram ídolos de multidões, agora se encontram em situação tão precária que muitas vezes precisam do auxílio de terceiros até para comer.
Paixão e morte do personagem
O esporte oferece, a quem nele caminha, muitas e variadas riquezas. Algumas são importantíssimas para o crescimento destes indivíduos ainda que alguns não se dêem conta disso. Na infância, temos a oportunidade de descobrir através do esporte que nem todos são iguais. Alguns são mais habilidosos, outros abnegados, um ou outro relaxado, muitos são pobres e uns poucos ricos. Mas todos partilham do mesmo espaço e dos mesmos sonhos de felicidade. Esta saudável convivência propicia a que possamos saber, mas nem sempre entender, que em uma sociedade como a nossa a competição é a principal arma para a sobrevivência e que nem todos têm as mesmas oportunidades o que nos torna muito mais diferentes do que deveríamos. Porém, o conhecimento que adquirimos nesta troca de experiências pode provocar uma aproximação das malditas classes sociais que nos distanciam. O que passa a ser, para alguns, uma das poucas possibilidades de melhorar as suas condições de alcançar um espaço condizente com as suas necessidades e/ou ambições. Alguns poucos desenvolvem ou têm nato algumas habilidades e talentos que os levam a patamares superiores, o que, dependendo do esporte escolhido e de sua própria capacitação, fatalmente lhes proporcionará relevantes respostas tanto no âmbito econômico quanto do social. Tornam-se atletas de elite. Estes têm tratamento para lá de especial, pois o esporte hoje é visto como uma verdadeira indústria de entretenimento que gera riquezas sem fim e onde eles são os protagonistas. Por onde passam são tratados como
verdadeiros reis e em muitos casos representam a própria alma de um povo representado por eles—embaixadores da nação. Quantas vezes acompanhamos multidões se aglomerando para receber determinado atleta ou seleção depois de desempenhos inesperados ou de excelência como aconteceu com os turcos e senegaleses após a copa do mundo da Coréia e Japão. Outras, mais triste, ocorrem depois de tragédias que fazem desaparecer este ser especial provocando verdadeiras comoções nacionais como ocorreu no Brasil após a morte de Ayrton Senna. Estes indivíduos possuem um oportunidade impar de conhecer todo o planeta, conviver com as diversas culturas, aprender com cada uma delas o que elas têm de melhor, desenvolver um senso crítico sobre todo e qualquer sentimento humano e, assim, tornarem-se seres ainda mais especiais. Vivem o sonho de todos. Uma vida cheia de novidades e amores que mais parece um contos de fadas. Mergulham de cabeça neste mundo de maravilhas que muitas vezes o leva a esquecer que para os outros a realidade é muito diferente. Mas quem está preocupado com a normalidade? Quem habita este ambiente de sonho possui pouca capacidade de entender o resto. Tudo que toca vira ouro, tudo que quer consegue, têm a sua disposição o séqüito que quiser para resolver os problemas do dia a dia como se estas questões não lhe dissessem respeito. Afinal, não são humanos e passeiam muito acima dos limites da terra. É' o que quase todos eles sentem. Mas um dia, tudo isso acaba. A capacidade física se esgota em si mesma e é hora de desembarcar desta nave. Quem possui discernimento suficiente para perceber a aproximação deste dia tenta escolher o melhor momento. Prepara-se para o choque ainda que jamais possa saber a profundidade do abismo em que cairá. Outros renegam a realidade e tentam prosseguir mesmo se dando conta que os resultados já não são os mesmos, as facilidades e os palcos se tornam cada vez mais ásperos e distantes. Mantém-se sonhando com o passado que já é distante, com a glória que não mais existe e com os afagos que se tornaram raros. Os primeiros decidem o fim quando se dão conta que nos últimos combates que enfrentou sempre foi a
nocaute, os demais são atropelados pela própria incapacidade e pelo sistema que rudemente lhe coloca para fora de casa. De qualquer forma é difícil senão impossível suportar tão privação. Muitos morrem sem querer aceitar o fato. Passam o resto de seus dias à procura das razões que o fizeram perder o lugar conquistado. Continuam vestidos como se jamais tivessem saído de campo. Alguns poucos, mais realistas, reerguem-se e começam uma nova vida sem glamour e sem fantasia, mas confiantes de que podem preservar suas identidades. A festa continua, porém os atores são outros. Mais jovens, atléticos, bonitos e carismáticos desfilam pela mesma rua onde um dia aqueles foram majestade.
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